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A Moça do Carro Branco

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

Atualizado: 8 de jan.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Mulheres são da Lua
Mulheres são da Lua

 

O rápido progresso da cidade transformara o antigo bairro, onde estava a garagem, em um híbrido de residências decadentes e comércio de bugigangas.


Funcionava o estacionamento no porão de um velho prédio de três andares. Não era, está claro, um local sofisticado ou modernamente equipado. Apenas um espaço úmido entre as colunas de sustentação do edifício; espaço escuro onde amontoavam-se, a preços módicos, os automóveis.

 

A proprietária passava os dias corretamente sentada, muito empertigada, à escrivaninha, folheando a inevitável revista de fofocas e televisão. Dois rapazes trabalhavam como manobristas. Eventualmente lavavam e poliam os automóveis que lá estacionavam, serviço pelo qual recebiam remuneração direta e a critério do proprietário do veículo em questão. Um deles, garoto ainda, talvez 17 ou 18 anos. O outro, Juvenal, viera do norte, como tantos e tantos outros na grande cidade, mas já não tinha as mesmas ilusões. A proprietária costumava elogiá-lo para os clientes: Juca, como o chamavam, era um excelente rapaz, bom caráter, cordial e simpático. Estava ali desde que o estacionamento começara a funcionar: oito anos. E sempre sorridente, sempre com um comentário espirituoso dançando nos lábios.

 

Em uma destas inacreditáveis manhãs de abril, de céu muito azul e límpido, entrou um carro novo no estacionamento. Um carro pequeno. Branco. Dele desceu uma moça. Morena. Cabelos trançados em volta da cabeça, pose de rainha, um sorriso muito branco, óculos escuros, jeans e camisa de seda, numa esportiva e elaborada elegância.

Juvenal estava terminando de polir um paralamas e levantou os olhos para a moça, numa curiosidade rotineira. Mas não conseguiu mais desviar o olhar enquanto ela terminava seus acertos de nova mensalista com a proprietária.

 

Foi então que ela tirou os óculos.

E ele viu aquele par de olhos muito verdes que pareciam um espaço à parte, uma coisa mágica, uma tela branca com duas luzes verdes, uma tela branca que dominava todo o seu campo visual.

Parou, hipnotizado. O pano úmido, esquecido, pendendo da mão.

A moça continuava a falar. Sorria, cordial. Mas Juca continuava vendo, nada escutava. E via os cabelos dela se desmanchando natu ralmente, escorrendo em ondas negro-azuladas sobre o colo moreno, sobre os seios perfeitos... Via-lhe o ventre, o umbigo, o sexo, as coxas, as...

-- Juvenal! -- gritou a proprietária-- é prá lavar também o carro da moca aqui.

Juca largou o pano, meio zonzo, caminhou até o carro. A moça saindo. Viu-lhe os pés, fortes, metidos em sandálias brilhantes. E as mãos, morenas, os anéis faiscantes. Mãos que subiram à nuca, coquetes, para ajeitar um fio rebelde de cabelo. A nuca.

 

A proprietária sorriu ante o espanto do empregado:

-- Bonita morena, não, Juca?

-- Um pedaço de mau caminho -- respondeu bem humorado. Mas não sorriu.

 

Aliás, daquele momento em diante, já não sorriria o mesmo sorriso de sempre. Alguma coisa se partira dentro do simplório Juvenal.

 

Quantos carros passavam pelas mãos de Juvenal em um dia? Quantos ele manobrava? Quantos lavava? Quantos polia? Encerava?

O carro branco da moça morena ficou sendo, desde o primeiro instante, "o" carro. Entrou nele, engatou a primeira marcha, levou-o até uma vaga. Mas esta operação rotineira pareceu-lhe maravilhosa. O carro tinha a insinuação de um perfume. Deveria ser o perfume dela...Não era nada que se assemelhasse aos enjoativos odores dos produtos para conservação de automóveis...Um toca fitas que os dedinhos dela acionavam. Volante esportivo que as mãozinhas acariciavam. Banco macio onde ela reclinava aquele corpinho de deusa...E Juvenal foi invadido por um súbito sentimento de ciúmes: bancos reclináveis? Ao lado de quem ela se reclinaria?

Abriu o porta-luvas: documentos, caixa de óculos, fitas.

Ficou olhando por um instante, fascinado.

Depois riu de si mesmo: "é apenas uma dona boa", pensou.

 

À tarde, quando ela veio buscar o carro, examinou-a de cima a baixo. Era bem bonita, sim. Sorriu prá ele. Disse "obrigada", mostrando os dentes muito alvos.

À noite sonhou com ela. Nua. Rindo dele. Apontando prá ele. Ele corria e, quando a alcançava, era para abraçar um carro igual ao dela. Verde, porém. Verde como os olhos dela. Abraçava latas verdes, paralamas verdes, direções verdes...

 

Esperou ansiosamente por ela no dia seguinte. Veio tarde.Entregou o carro a ele. Não tirou os óculos escuros. Os seios dela roçaram de leve no braço dele ao sair do carro, a porta gentilmente aberta e segura por ele. Já estava indo, apressada, quando se voltou para falar com ele:

-- Foi você quem lavou meu carro ontem?

-- Foi, sim senhora -- respondeu num murmúrio.

-- Ótimo. Quero que lave todos os dias. E polimento uma vez por mês, ok?

E se foi.

 

Ninguém prestou atenção. Mas Juvenal perdeu muito tempo lavando o carro dela. Por dentro, primeiro. Mil coisas lá dentro: livros, cujos títulos ele não compreendia sequer o significado; pastas; um grande xale azul. Deveria ser verde, pensou, para combinar com os olhos dela. Tirou os tapetes, passou o aspirador, descobrindo as sujeirinhas mais escondidas, tentando adivinhar de onde viriam aqueles grãos de terra, pedrinhas, areias. Deve ir prá praia no fim de semana, imaginou. Ela na praia, o minúsculo biquíni, o corpo brilhante de óleo...Limpou os bancos, o painel, o teto. Deixou tudo novo, brilhante. Mas ainda podia sentir o perfume dela...Fechou cuidadosamente o carro para lavá-lo por fora. Jato d'água. Imaginou-se sob o chuveiro, com ela. Sob a cachoeira do lajeado, na fazenda onde nascera e se criara. Começou a ensaboar a carroceria, com um exagerado cuidado. A capota. Os vidros. Quando chegou aos paralamas, jogou fora o pano. E esfregava os paralamas, redondos, com as mãos. O detergente que usava era ácido, mas suas mãos eram ásperas. Deveriam ficar macias, se para ensaboar o corpo dela. Redondo. Uma dona dessas, bonita deste jeito, deve ter machos de mãos macias, perfumados, que sabem dizer coisas.

Os pneus, agora. Novos. Tratou de deixá-los pretinhos. Os pelos dela. Devem ser pretinhos também.

Os cromados. Poliu-os, lustrou-os...Os anéis dela. O faiscar do sol nos olhos dela.                                                           

Os faróis deveriam ser verdes.

 

Foi buscar uma lata de graxa.

Enfiou-se debaixo do carro, os dedos sujos de graxa. Queria lambuzá-la toda, sujá-la de graxa, fazê-la igual a ele.

Demorou muito tempo com o carro dela.

Terminado, foi encostá-lo a um canto. Afastou-se. Olhou de longe. Brilhava. Ficou contente. Imaginou se ela notaria, sorriria.

Voltou ao carro. Ficou examinando cuidadosamente, procurando eventuais manchinhas, passando a flanela aqui e ali. Pensou até em entrar, reclinar o banco e ficar um pouco ali dentro, quieto, sentindo o cheiro dela. Mas não. Estava sujo demais.

 

À tarde entregou-lhe o carro, orgulhoso.

Ela disse apenas:

-- Você lavou?

Meu Deus! Seria míope? E com aqueles olhos?

-- Lavei sim senhora.

-- Quanto é?

-- Nada não.

-- Como nada?

-- Olha, depois, da outra vez, a senhora paga. Quanto achar que deve.

A moça pareceu surpresa. Deu de ombros, entrou no carro, foi embora.

Para onde, meu Deus, para onde?

 

Juvenal foi perdendo a graça.

Todos os dias esperava por ela, o coração aos pulos.

Todos os dias limpava o carro.

Não tinha mais prazer nas eventuais namoradas.

Queria uma fêmea de tranças negras enroladas na cabeça e olhos muito verdes.

 

Um dia, ela não veio.

Passou o dia feito louco, tenso. Brigou com o outro manobrista. Entrou num bar, pediu um trago. Dois, três, quatro. Voltou tonto. Com raiva dos carros. Todos os carros. Odiava carros.

 

Ela veio no dia seguinte. Sorridente. Saltitante.

Juvenal de ressaca. Por que mais sorridente? Por que mais saltitante? O ciúme queimando no peito.

Havia lenços de papel no porta-luvas.

Pra que esses lenços? Ela nem está resfriada.

Nunca seria dele. Era esta a verdade, pensou. Ela era de um outro mundo, outro universo.

Esfregou-lhe o carro com raiva. Imaginou-se sujo, imundo, a possuí-la num canto escuro daquele porão garagem. Violenta- la. Aviltá-la.

Então parou perto da traseira do carro dela. Arfando. E jogou-se sobre o carro, como se jogava sobre o corpo das namoradas, sobre os bezerros da fazenda, em sua adolescência.

Depois ficou ali, perplexo. Até se dar conta do ridículo de estar estendido sobre a traseira de um automóvel.

Saiu pra rua, tentando ser racional. Não sou mais criança e ela é apenas uma menina boa, rica e besta.

Mas queria tê-la em seus braços. Haveria de ser carinhoso com ela.

Sem querer, parou no bar e pediu uma pinga.

Duas.

Pensando que ela seria como uma dessas moças de revista, de folhinha, de TV. Inacessível aos homens simples como ele.

Três.

Mas era demais, era um desaforo, ela vivinha da silva ali, perto dele.

Quatro.

O cheiro dela o perseguia.

Cinco.

Ele não merecia este sofrimento.

Seis.

 

Voltou bêbado.

A dona do estacionamento o repreendeu: Onde estivera? Afinal, o que era isto? Bêbado no horário de trabalho?

Mas foi amansando a voz, mais preocupada do que brava. O que estaria acontecendo com o Juca? Sempre tão alegre e trabalhador...Há dias já que ela vinha notando. Fez perguntas, ofereceu ajuda. Acabou por mandá-lo para casa, antes mesmo do final do expediente. Estava bêbado demais, amanhã conversariam.

 

Juca saiu aos trambolhões.

Fim de tarde.

De repente, dobrando a esquina e na mesma calçada, vem vindo a moça. Ela o viu. Parou. Sorriu pra ele:

-- Já vai embora?

Ele, paralisado, feito bobo, pensou, ali no meio da rua.

-- Você lavou meu carro hoje? --ela perguntou, já com a mão dentro da bolsa. Mão que ele, rápido, agarrou. E mordeu.

Ela gritou. Um grito abafado, rouco. Quis dizer alguma coisa, mas a expressão dos olhos dele, nos dela, a impediu.

Ela já compreendera quando ele, movido pela coragem da bebedeira, explicou:                                                                    

-- Moça, 'tô louco pela senhora. Eu quero levar a senhora para a minha cama.

Ela esboçou um sorriso. Um ar maroto. Disse apenas:

-- Espere aqui. Não saia daqui, volto já.

 

Minutos mais tarde parou o carro branco ao lado dele, abriu a porta e disse com o rosto sério:

-- Entre.

Juvenal entrou.

 

Ela sorriu, pondo o carro em marcha. Voltou-se para ele:

-- Está tudo bem, --disse-- mas não será na sua cama.

Abriu o vidro da janela ao lado dele, mandou que reclinasse o banco:

-- Procure respirar fundo, você está um pouco bêbado.

A cabeça dele girava. Estaria sonhando?

Ela corria, dirigindo com segurança pelo trânsito da tarde. Entrou numa estrada. A bebedeira de Juca melhorou um pouco por causa do vento forte que batia em seu rosto, pela janela aberta.

Um motel. A moça do motel olhando para ele. Documentos.A garagem de um chalé. Estacionaram. Ela saiu do carro, desceu a porta da garagem e ordenou:

-- Venha.

Entraram. Juvenal olhava tudo como num sonho: espelhos no teto, nas paredes, tapete macio... Deveria custar um dinheirão todo aquele luxo.

Ela pegou num telefone. Falou com alguém, pedindo café e uísque.

Ele não conseguia tirar os olhos de uma banheira esquisita, num canto.

-- Olha, o banheiro é ali, -- indicou ela-- tem toalhas aqui, sabonete. Lá deve ter pasta e escova de dentes. Toma um banho que vai te fazer bem e volta pra tomar café, tá?

Ora,-- pensou -- a sujeitinha estava a dar-lhe ordens.

Obedeceu.

Tanta água assim como naquele chuveiro só mesmo na cachoeira.

Voltou enrolado na toalha felpuda, pingando água no tapete.

Ela na cama. Os cabelos soltos. Nuazinha, como tanto ele a vira em suas fantasias. O copo de uísque na mão.

-- Seu café -- sorriu para ele.

Engoliu o café, sem coragem de olhar para aqueles olhos verdes. Sem coragem pra nada. De repente, a raiva. Sentiu-se um bobo feroz, um touro numa loja de cristais. Veio uma vontade de quebrar tudo, uma vontade de amar a moça com fúria, estupidez.

Ela vai ver quem manda aqui. -- e atirou-se sobre ela.

O copo voou.

 

 

No dia seguinte foi trabalhar sem ansiedade.

Os carros voltaram a ser máquinas. E não havia ninguém a esperar.

A moça do carro branco era uma fêmea comum. Meio fria, até, cheia de gemidos fingidos, truques bobos e gestos estudados.

Juvenal achava mesmo que, na cama, preferia a Maria Rosa.

O carro branco já não significava nada.

Houve até aquele dia em que ela reclamou de uma manchinha no

paralamas.


1980, maio, 05

 

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