por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.

Estou. Mas poderia não estar. Escapei três vezes de ir parar nos porões do arbítrio e da tortura da ditadura militar, nos anos 1970.
Nem vou contar todas. Mas foi por um triz.
Numa dessas vezes, quando os meganhas invadiram as oficinas gráficas do jornal onde eu escrevia, para impedir que a minha crônica ganhasse as ruas, foi o meu editor, Carlos Acuio, que convenceu os caras, às quatro da manhã, que eu não valia a diligência de ir me buscar em casa porque era uma menina romântica e boba, sem ligação com os tais "subversivos" que esses agentes da repressão tanto perseguiam.
Além de Rubens Paiva, Vladimir Herzog, Stuart Angel (e depois a mãe dele, Zuzu, assasinada num "acidente" de trânsito), inúmeros menos famosos pereceram sob tortura na ditadura, muitos de seus corpos desapareceram, enterrados em valas comuns e secretas, atirados ao mar, dos aviões e helicópteros da FAB. Seus crimes? Serem a favor da liberdade de expressão, lutarem contra um regime baseado na escuridão e na censura.
Nunca vou ao cinema, quase nunca, aliás. Vejo filmes na telinha, nas muitas opções que temos hoje. Minhas amigas Roseli Zampirolli e Suely Zampirolli Or acabaram me arrastanto, há um mês, ao Reserva, aqui do lado de casa, para assistir ao badalado filme de Walter Salles. Não comentei, para evitar a chuva de ovos e tomates podres que cairia sobre mim aqui nas redes.
Não que eu tema os putrefatos bólidos, afinal, levei vários deles ao longo da vida, virtuais ou literais (por exemplo, na rampa de entrada da PUC SP em 1977...). Só não estava com saco pra discussões inócuas sobre o filme. Saí do cinema meio decepcionada. Eu esperava mais. Mais emoção. Uma maior reprodução do clima de terror que viviam todos os que tinham alguma consciência política, nessa época. Afinal, se a ideia era resgatar o horror vivido por inúmeros brasileiros durante a ditadura, o filme pareceu morno para mim, diante das minhas lembranças.
No entanto, eu estava errada. Morno ou não morno, o filme provou ter cumprido sua missão junto ao público mais jovem, principalmente, e, de quebra, trouxe ao Brasil o primeiro Oscar de Melhor Filme Internacional, além das outras duas indicações (Melhor Atriz, para Fernanda Torres e Melhor Filme).
Já que uma enorme fatia do nosso povo, naqueles tempos de "Brasil-ame-o-ou-deixe-o", parecia não perceber (ou não querer ver) que estávamos sob um regime de cruel exceção, um dia, no fim dos anos 1970, escrevi uma crônica chamada "Guerra Escondida". Um dos meus professores na universidade levou, para a sala de aula, um exemplar do jornal com a minha crônica publicada e fez com que os alunos a analisassem e comentassem.
(veja reprodução da crônica, abaixo dos comentários)
Evidentemente, naquele tempo em que só se podia falar a verdade usando o recurso das metáforas, eu narrava a situação de um hipotético país que vivia uma guerra civil cruel e sangrenta, sem que ninguém (que não estivesse envolvido nela) percebesse. Um das minhas colegas de sala me perguntou então: -- De que país você está falando, Isabel?
Muitos de meus amigos e conhecidos foram presos, torturados, carregaram sequelas em seus corpos e em suas almas por anos a fio e talvez -- os que sobreviveram -- ainda carreguem.
Amelinha Teles, por exemplo, que há décadas preside a ONG União de Mulheres, foi torturada na frente de seus filhos, ainda crianças. Depois passou anos sem saber onde tinham ido parar os seus filhos amados. E só estou cometendo a indiscrição de contar isso aqui porque ela própria, a Amelinha, nunca fez segredo de sua triste -- mas heroica -- história.
A atriz Bete Mendes, quando era Secretária da Cultura do Estado de São Paulo, em 1987, foi submetida ao horror de ter que cumprimentar, ao desembarcar num país estrangeiro, na comitiva oficial de recepção aos representantes brasileiros, um de seus torturadores que estava então "escondido" naquele país. Ela própria me narrou isso e seus olhos estavam marejados por lágrimas... Anos depois!
Por essas e por outras, ainda estarmos aqui (para contar esses casos aos que não os viveram e não fazem ideia do terror que significam) é muito bom!
Estamos aqui, testemunhas públicas ou anônimas da ditadura militar, para mostrar que -- a despeito dos 8 de Janeiro da vida -- o Brasil Nunca Mais será ditadura!
Nós não nos calaremos, nem diante do retrocesso político e social que estamos testemunhando na intolerância, na ausência de diálogo, na volta galopante dos mais vexatórios preconceitos que inudam as nossas telas.
Obrigada, Marcelo Rubens Paiva, pelo seu livro, pontapé inicial para que se reunisse toda a turma da produção do "Ainda Estou Aqui" e trouxesse essa aula de civilidade, esse resgate histórico, essa retomada da consciência, tudo isso que tanto estávamos precisando, nesse momento, em nosso país.
Obrigada a todos vocês, já exaustivamente citados por aqui: Fernandas maravilhosas, Walter genial, produção perfeita, atores excelentes! Vocês merecem o primeiro Oscar, sem sombra de dúvida.
Estou muito feliz e orgulhosa por ainda estar aqui!
Vera Krausz - Perfeita tua fala Bel ! Momento de resgate publico ! E o filme trouxe um recurso maravilhoso. Ele nao mostrou o horror da tortura. Ele fez o leitor sentir por duas horas o que é a tortura psicologica. O que é que o escondido atras das cortinas causa ... o que é ter que sorrir, para continuar a viver. Mostrar a dizimada familia pela tortura. O luto silenciado de todos que morreram, me lembra o Silencio dos Inocentes ! Agora ... todos os mortos nos calabouços da tortura do Regime Militar, estão vivos e nos palcos do Oscar . "Ainda Estou Aqui ".
Isabel - Sim querida! O Sucesso do filme é a deixa para que todos nós, que nos opomos a essa torrente de retrocessos que estamos vendo nas redes, não nos calemos! Precisamos, na redes sociais e na vida, ser tão eficientes quanto eles, os da extrema direita, que só semeiam mentira, intolerância e ódio!
Vera Krausz - Fundamental nos posicionarmos. Como bem você fala, não é tempo de sermos "mornos". A Extrema Direita é Higienista. Desculpe se fui alem aqui. Mas já ficamos muito quietinhos ... ❤☀
Isabel Fomm de Vasconcellos eu também fiquei inicialmente tonto com
O fato de ser tao pouco representativo da dor! Mas depois entendi o propósito do walter- mostrar o processo de prevenir a dor dos filhos! Mas Me decepcionei
Isabel - Sim, eu tb saí do cinema decepcionada e senti que, por outro lado, decepcionei as minhas jovens amigas (Roseli e Suely) que tão gentilmente me ofereceram o filme e o café after. No entanto, para elas, que não viveram a ditadura porque eram criancinhas à época, o filme foi, sem duvida, uma impactante revelação!
Isabel, também tenho uma história semelhante a sua.
Isabel Fomm de Vasconcellos José Eduardo Pereira Lima Então conte-a, Zedu! Não é hora de se calar. Precisamos por a boca no trambone contra o retrocesso!
Pensar que o país continua contaminado dessa desgraça dos torturadores, dos terroristas sociais. Nós somos fortes, somos resistentes e temos como nossa proteção a Cultura.
Oi Isabel, a respeito do filme ser morno com relação.à barra pesada da época, um comentarista da Globo disse que o filme focou mesmo a vida da família sem o pai, o sumiço dele não era o fator em questão.
Isabel, eu não era criancinha, na época. E adoraria que a "impactante revelação" ocorresse de verdade, mostrando os dois lados da guerra, e não apenas um. Parabéns pelo seu texto.
Roseli Zampirolli - Bom dia querida!
Você tem experiências vividas em tempos que tinham que ser sentimentos ocultos, mas que agora podem ser exemplos para entendermos melhor nossas histórias...
É o momento de escrever um livro sobre... aproveite a porta aberta!!!
Beijinhos
Li seu texto repleta de emoção, e gostaria de deixar um grande abraço, que orgulho de fazer parte, mesmo que distante, dos seus amigos virtuais. Você é uma grande mulher
Isabel, que bom que ainda estamos aqui para enaltecer a democracia! Viva nossa amizade e nossa luta pela justiça!
Obrigado Isabel Fomm de Vasconcellos
Jornal O Diário Popular, Domingo, 13 de janeiro de 1980

Vera Krausz - Que beleza Bel ! Esta é tua mais profunda literatura ... escondida dos tempos da guerra. Pérolas do Grande Livro da Vida ! Mas vividas, atuais, vividas. 👏🏻👏🏻🙌🏼🙌🏼
Zedu Lima – Adorei, Isabel. Quero mais!
Comments