por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Dentre os muitos mitos e lendas do candomblé, há uma pequena história que fascina. Trata-se das duas mulheres de Xangô, guerreiro. Uma delas é Oxum, a rainha. A outra, Iansã, deusa dos raios, das tempestades.
Oxum é aquela que traz na mão direita um espelho.
Iansã sai ao lado de Xangô, guerreiro, para a batalha.
Oxum – lembrando um pouco a rainha má dos contos de fadas – fica a mirar-se no espelho. Existe alguém mais bela do que eu?
A distinção me parece atual, onipresente. Há mulheres que são oxuns, há mulheres que são iansãs. Não é preciso muita imaginação para aplicar os exemplos.
Mulher dividida, lutando por uma posição no mundo, negando-se a ser objeto, negando-se a ser adorno. Partindo para a luta do cotidiano, mulher sofrendo em dobro.
Sofrendo para deixar de ser oxum, a mirar eternamente sua própria imagem, seu próprio umbigo, seu pequeno mundo distante da rua, da guerra, da briga pela sobrevivência. (Carolina na janela. Penélope à espera de Ulisses).
Temos, mas é que ser Iansãs.
No entanto, o mundo ainda nos cobra os dois papéis, simultâneamente.
A guerreira, quando retorna à casa, deve subitamente, transformar-se em Oxum: dócil, meiga, enfeitando-se pro seu homem, desdobrando-se em atenções familiares. Mas esta iansã que vem da batalha da rua – competindo em desigualdade com os xangôs desta vida – talvez não queira mais fundir-se em Oxum. Talvez queira trazer para o mundo doméstico os ranços, as esperanças, derrotas e conquistas de seu dia a dia.
Cabe aqui um apelo aos xangôs: Que decidam-se afinal; que percebam de uma vez esse conflito básico. E lembrem-se que Iansã é a companheira de luta, não a inimiga. Coragem. Desafio. Raio. Tempestade. Força.
Lembremos nossas avós. Iansãs verdadeiras, travestidas em oxuns, a força por detrás do poder patriarcal.
É hora de ser iansã, sem máscara, companheira e amiga de Xangô. É hora de, como queria o poeta, ir para a rua e beber a tempestade. (“Cala a boca, Bárbara”). Para que então sejamos uma.
A oxum de boa cabeça, tranquila, bonita, sexy e perfumada, há de ver, de repente, refletida no fundo do espelho, a brava guerreira. Aquela que tem nas mãos a força da natureza, a explosão da tempestade, a liberdade dos ventos e um amor imenso, fruto da batalha.
Aquela que ousa. E já não se pode calar.
27 de abril de 1980
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