(a História de uma Médica que Nunca Desiste)
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano, com Dra. Tânia Santana.

Romanceada e emocionante, a história da médica que deixou para trás uma vida fácil e confortável, na Bahia, onde vinha de uma família tradicional, mas também de um casamento infeliz e tirano, para baixar em São Paulo, com dois filhos a tiracolo e nenhuma das benesses familiares. Lutou. Venceu. Encontrou o amor. Pioneirou na área sexual e arrasou!
Capítulo 1 – Vitórias
Bahia, 1966.
O sol dourava a copa dos oitizeiros centenários do Corredor da Vitória. Caminhando pela calçada da Avenida Sete, Tânia pensava nas muitas ironias históricas daquele local. Estava em Salvador, Bahia, o estado que se recusava a admitir, como data da independência do Brasil, o dia 7 de setembro, o mesmo dia que o poeta Vinícius de Moraes chamara, em Carta a Tom, de “a data nacional”.
Na Bahia, a data da independência pulava para meses depois, era o 2 de julho, dia em que os últimos portugueses foram expulsos daquela que fôra a primeira capital federal do Brasil, a Cidade de Salvador. A maior ironia – pensava ela – era estar exatamente dentro da avenida 7 de setembro, o Corredor da Vitória, assim chamado durante a guerra da Independência da Bahia porque, por ali, marcharam as forças que acabaram expulsando o exército português de Madeira de Mello... em 2 de julho de 1823!
Tânia sorriu, ao seu próprio pensamento. Não era à toa que o povo soteropolitano chamava a avenida apenas de “Avenida Sete”, sem o setembro... Aquele era o metro quadrado mais valorizado do Nordeste. Assim como no metro quadrado mais valorizado do Brasil, o da Avenida Paulista, em São Paulo, essa também fôra a avenida das mansões milionárias e essas mansões estavam começando a ser derrubadas para dar lugar aos imponentes edifícios modernos. A diferença é que aqui os elevadores dos prédios levavam tanto para cima quanto para baixo do nível da avenida, localizada na encosta do morro que descia até o mar, cerca de trinta metros abaixo.
Tânia estava exultante naquela manhã. Pensava que sairia correndo para dar a boa notícia em casa. Mas não. Caminhava devagar, como se quisesse estender aquele momento maravilhoso, único e irrepetível, em sua vida: Ela entrara na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia! A primeira escola médica do Brasil, fundada por D. João VI, em 1818.
Medicina, entretanto, não era carreira, em 1818, para mulheres. E, de fato, até então, ainda existia um grande preconceito contra elas nas faculdades de Medicina, em todo o mundo.
No entanto – refletia Tânia – a primeira mulher formara-se por aquela escola somente depois de quase oitenta anos de sua fundação: Fôra a Dra. Rita Lobato, uma gaúcha de nascimento, a primeira médica brasileira formada no Brasil. Antes dela, viera Maria Augusta Estrela, mas esta formara-se no Exterior, graças a uma bolsa concedida por Dr. Pedro II, então nosso imperador.
Tinha sido também o imperador quem, em 1879, assinara um decreto-lei conferindo “a liberdade e o direito de a mulher frequentar os cursos das faculdades e obter títulos acadêmicos”.
Mas, apesar da liberalidade do Imperador, a sociedade brasileira esperava das mulheres apenas que cumprissem bem o seu papel de mães e esposas. Ter uma profissão não era coisa para mulher “direita”. E se essa profissão fosse a de médica, nem pensar!
Rita Lobato havia se matriculado, inicialmente, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde seu irmão cursava farmácia. Mas eram tantos os deboches e as hostilidades que, para não prejudicar o irmão, ela se transferiu para a Faculdade de Medicina de Salvador.
A mãe de Rita morreu em 1883, ao dar à luz ao seu filho caçula. Rita prometeu a ela, em seu leito de morte, que nenhuma mulher morreria de parto nas suas mãos quando ela se tornasse médica.
Quando Rita se transferiu para a Bahia, seu pai, viúvo, mudou-se para lá com os filhos e, todos os dias, para evitar que a filha fosse agredida ou destratada por estar cursando uma faculdade “de homens”, ia com ela à escola e esperava do lado de fora que as aulas acabassem para escoltá-la de volta.
Rita fôra também política, eleita vereadora em 1935, quando já, de volta ao seu estado natal, clinicava em Porto Alegre.
A primeira mulher baiana a sentar-se nos bancos escolares da Faculdade de Medicina onde Tânia acabara de ingressar, formada em 1893, foi a Dra. Francisca Praguer Fróes. Nome de rua no Bairro da Barra, em Salvador, foi também jornalista, unindo a informação da saúde feminina e dos direitos da mulher. Francisca foi ainda uma das precursoras da luta sufragista na Bahia e no Brasil. E escrevia poesias!
Francisca Barreto Praguer era seu nome completo e ela nascera em 21 de outubro de 1872, filha de Henrique, imigrante croata de origem judaica e de Francisca Rosa Barreto Praguer, na cidade de Cachoeira que, naquele tempo, tinha uma importante vida cultural.
Aos 16 anos matriculou-se na Faculdade.
Formada, depois de enfrentar preconceitos de colegas e professores que não admitiam mulheres médicas, partiu para a luta em favor de seu sexo.
Em 1899 casou-se com João Américo Garcez Fróes, ex-colega de faculdade, com quem teve dois filhos. Ele vinha de uma tradicional família baiana e causou escândalo, defendendo publicamente o divórcio, quando nenhuma outra pessoa ousaria fazer isso. Francisca foi a primeira mulher em seu estado a dirigir uma clínica obstétrica. E era redatora na Gazeta Médica da Bahia, então a mais importante publicação de saúde; queria educação igual para meninos e meninas, e o direito das mulheres à propriedade e ao voto.
Em 1931 tornou-se presidente da União Universitária Feminina, entidade ligada ao movimento criado, em 1922, pela bióloga Bertha Lutz, feminista brasileira pioneira.
E morreu, em plena luta, a 3 de dezembro de 1931, no Rio de Janeiro, onde participava do II Congresso Internacional Feminino.
Ainda que mais não fossem essas maravilhosas pioneiras médicas brasileiras a estudarem na mesma faculdade de Medicina onde Tânia – agora, em 1966, tão pouco tempo depois de tudo isso, pensava ela – fôra admitida, o orgulho dessa admissão, para ela, passava também pelo fato de que seu pai, médico muito prestigiado na cidade, se formara ali.
Exultante, orgulhosa de sua conquista e da história importante das mulheres na universidade onde conseguira entrar, histórias de vitórias contra a discriminação e a condição de segunda classe reservadas ao seu sexo, Tânia tomou uma importante decisão: mandaria buscar sua mãe, Vanda, que há dois anos deixara o lar e os filhos para morar em São Paulo, completamente desiludida de seu casamento. Sim, ela queria que sua mãe, também discriminada, também traída e desvalorizada dentro de seu próprio lar, é que fosse quem acompanhasse seus passos em direção à carreira de médica, a carreira para qual ela nascera. Sua mãe tinha que voltar! Se seu pai não gostasse – pensava ela – ele que fosse morar na casa da amante.
Comments