por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
(capítulo do Livro "O Fantasma da Paulista", 2a. edição, 2019, Soul Editora)

O Fantasma estava tão entretido na conversa com Joana, naquela tarde dos anos 2000, que nem se lembrou que não podia cruzar os limites da Paulista. Cada vez que tentava isso – e ele já se fartara de tentar – sumia. E pronto. Reaparecia enroscado em alguma planta em algum lugar da avenida, em algum ponto do tempo entre 8 de dezembro de 1891 (dia da inauguração da Paulista) e 8 de dezembro de 2050 (dia da inauguração do Memorial Virtual da avenida, então destruída e reconstruída como era em 1891).
Assim, perdeu-se de Joana e acordou dentro de um enorme vaso numa sala ricamente adornada. Abanou a cabeça, focou a visão, apurou os ouvidos, tentando descobrir em que época estaria agora. A sala estava deserta e o sol penetrava de leve por entre as cortinas. O Fantasma saiu da planta e caminhou em direção à saída da casa.
Era, sem dúvida, a época áurea da sua avenida (outros diriam que outras foram as épocas áureas, mas ele gostava particularmente daquela). Podia sentir o perfume das magnólias que margeavam a avenida de pedras brancas. Era o tempo das grandes mansões, dos casarões. Anos 1910? 20? 30? Pensou ele, já tendo chegado à calçada. Mal pode concluir o pensamento e um ruído louco (mas já seu velho conhecido) ensurdecedor precedeu em uma fração de segundo à montanha de automóveis que passou, um carro colado ao outro... No outro quarteirão um aglomerado de pessoas sacudia lenços brancos e realizava entusiásticas coreografias...Joaquim Eugênio de Lima sorriu. Uma primitiva corrida de automóveis. Anos 1920. (já conhecia a moda das épocas e até os modelos e estilos dos automóveis, sempre presentes na Paulista, depois da primeira década do século XX).
Neste instante, saindo do jardim da casa onde ele acordara, veio uma jovem de pele morena e cabelos estranhamente claros. Ela o viu –ele percebeu que ela podia vê-lo, o que nem sempre ocorria, a maioria das vezes ninguém o via...O rosto dela transformou-se quando o viu, ele leu nela um misto de simpatia, piedade e legítima preocupação:
- O senhor está passando bem?
- Nunca me senti melhor, cara senhorita e agradeço a sua gentil preocupação.
- Mas o senhor...o senhor está...translúcido de tão pálido!
- Como fantasma, senhorita, a transparência é um de meus atributos.
A moça levou a mão à boca, num gesto coquete e de fingido espanto:
- Oh! Sempre desejei viver uma experiência transcendental, mística...
- Lamento se terei que decepciona-la, minha jovem...
- Maria Eugênio de Cintra e Castro, encantada
- Joaquim Eugênio de Lima, O Fantasma da Paulista.
- Ora!! Mas o senhor é o empreendedor da Avenida Paulista.
- Ao seu dispor, mas não mais em carne e osso.
Foram subitamente interrompidos pela louca passagem dos carros que, tendo feito a volta no Paraíso voltavam agora rumo à Consolação.
Eugênia acenou para um dos corredores, entusiasmada.
- Gosta dessas máquinas? – perguntou o Fantasma.
- Ah...as máquinas são maravilhosas. Não só os automóveis apenas mas a maravilha da indústria que certamente transformará o mundo neste século – suspirou ela.
- E como transformará! - murmurou o Fantasma. E perguntou: Mas certamente máquinas não são motivo do interesse de uma jovem em flor como a senhorita?
Eugênia riu:
- Ao contrário. Desde pequena sempre me interessei pelas máquinas e, é claro, me fascinei pelo avanço do conhecimento científico. Li Julio Verne quando mal sabia ler e já me apaixonei... e me interesso também por astronomia, palenteologia, enfim... ciência!
- E isso não alarma a sua família?
Meus irmãos zombam de mim mas meus pais até me incentivam, graças a Deus.
O senhor sabe, eu sempre fui esperta. Faço tudo direito. Falo francês, pinto e bordo, toco piano, sei comandar uma casa e sou capaz de cuidar de um bebê. Em troca, como eles me negariam um pouco de conhecimento? Livros, alguns cursos...Quando vamos ao Exterior, aí sim, eu gosto. Trago a mala cheia de livros, vou a feiras e exposições, frequento as sessões abertas das Universidades. O senhor sabe, na Europa, as mulheres estão em plena luta pela igualdade de direitos e de oportunidades, são avançadas, estudam, algumas até trabalham e fazem carreira... Não é como aqui – Eugênia suspirou- em que ainda somos umas escravas...
- E a senhorita pretende escapar desse destino, eu digo, desse que a senhorita chama de “escrava”?
- Na medida do possível, seu Fantasma, já que não me julgo uma Joana D’Arc... Na verdade eu não vejo porque não me casar e constituir família como todo mundo. Mas eu quero muito mais do que apenas isso. Sou capaz de muito, muito mais.
Eugênio de Lima deteu-se um segundo na observação da figura da jovem: a pele morena, rosto miúdo, os cabelos cortados abaixo das orelhas, lisos, de um castanho claro com reflexos alourados, corpo esbelto, vestido acima dos joelhos, roupas finas e bem cortadas, de excelente tecido...um anel de pedra e um fio de ouro em torno do pescoço. “Tudo clean”, pensou ele, “como diriam no ano 2000”...
- Por que você está me olhando?
- Mil perdões. Não tive a intenção de encabulá-la. Admirava a elegância de seus trajes e do corte de seu cabelo.
- Tudo como em Hollywood. Mas eu não gosto muito de jóias e enfeites. Sinto-me como uma árvore de natal. – deu uma gostosa risada e continuou: - não sou muito como as outras mulheres...
- A senhorita parece mesmo estar um passo à frente do seu tempo – respondeu ele, pensando que só encontrava mulheres assim, decididas e de vanguarda nessa sua jornada pelas diferentes épocas na Avenida Paulista.
Saíram caminhando, passando entre a pequena multidão que agora celebrava com os felizes vencedores da corrida de automóveis. Foi, inclusive, alvo de discreto e abafado escândalo, ter sido visto passar, no meio das comemorações, uma Maria Eugênia alienada, que gesticulava, como se estivesse conversando com um ser invisível.
Os muitos comentários seguintes ao dia da corrida, porém, deixaram Eugênia em segundo plano. Fuxicos sobre namoros e até deslealdade (um horror, entre rapazes de tão boas famílias!) entre os competidores eram assunto de conversas mais apetitosas do que uma crise de patetice de moça.
Passaram adiante do Trianon e tinham acabado de cruzar a Alameda Campinas. O Fantasma apontou para a segunda casa à direita deles:
- Você sabe que essa foi a primeira casa erguida aqui na avenida?
- Sei, sim. Meu pai sempre comenta isso. Ele também já falou do senhor, muitas vezes. Ele dizia que o senhor não vivera o bastante para acabar de desenhar a cidade de São Paulo e que o seu desenho teria trazido menos problemas à urbe do que os que hoje existem...
- Bondade dele, senhorita. Eu apenas realizei, em vida, alguns empreendimentos de grande vulto para esta cidade. Fato do qual me orgulho. Mas não creio que por melhor que pudesse vir a ser qualquer planejamento, ou desenho, nada, nada mesmo poderia deter o louco e desordenado crescimento dessa grande metrópole...
- Ora, senhor de Lima, não somos uma grande metrópole...
- Ainda não, senhorita Eugênia.
- É verdade que S.Paulo, como diz meu pai, cresce dia a dia
- É o dinamismo incontido do paulista, que faz milagres, incrementando as indústrias mais e mais e fazendo com que o comércio não encontre obstáculos que impeçam seus passos... -- completou ele.
- Também acredito nisso, nessa vocação para o progresso, presto atenção às conversas e leio jornais e revistas. Quero saber o que acontece, quero participar do mundo! O senhor sabe, eu vejo como esses milionários nossos amigos são pródigos nos prestígio das iniciativas mais ousadas, tanto nos empreendimentos quanto na cultura. Os Prado mesmo, este ano, financiando aquele pandemônio da Semana de Arte Moderna...
- A senhorita não apreciou a Semana?
- Pelo contrário. Achei supimpa! Trés chic. Gostei muitíssimo. A música de Villa Lobos. As falas de Mário e Oswald. A ousadia de Anita Malfati...Prefiro A Paulicéia Desvairada a Urupês. Aliás, já não gosto do Lobato. Desde que ele desconsiderou a Anita Malfati naquele famoso e comentado artigo no jornal O Estado de S.Paulo,... Paranóia ou Mistificação. Já era difícil para ela sendo mulher alcançar o reconhecimento e o respeito do mundo das artes. O senhor sabe, na verdade estavam loucos por um pretexto para destrui-la. Como uma mulher ousa pintar como um homem? Como permitem que ela estude na Europa? O que interessa à mulher a arte? O lugar das mulheres é no seio da família, dentro do lar...Por causa do Lobato devolveram quadros já comprados, destruíram telas a bengaladas... Eu ainda era criança quando aconteceu mas acompanhei tudo, lá em casa todos comentavam... Foi em 1917. Fiquei tão impressionada que fui ao fogão queimar meus livros do Lobato...
O Fantasma ria.
- Mas você teve coragem? Coragem de queimar o Sítio do Pica-pau Amarelo, Dona Benta, Tia Anastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília...
- E Visconde de Sabugosa! – completou ela, quase às gargalhadas.
- Mas devo confessar que não pude resistir a uma edição de capa dura e colorida de A Chave do Tamanho que encontrei numa livraria um dia desses.
- Ah! Esse tinha mesmo que ser o seu predileto.
- Pois é. A ciência, sempre. Toda a maravilha que descobri com a glândula pituitária de A Chave do Tamanho me remeteu à biblioteca de meu pai. Comecei a me corresponder com uma sociedade internacional de endocrinologia e acabei sendo a primeira pessoa no Brasil a conhecer o resultado do trabalho dos cientistas canadenses que, nesse ano, revolucionaram a medicina descobrindo o hormônio da insulina como remédio para controle da terrível enfermidade do diabetes...
O Fantasma mal podia conter o seu espanto:
- Dona Maria Eugênia, a senhorita é deveras surpreendente para uma mulher do seu tempo!
- O senhor acha? – disse ela, fingindo espanto. E continuou: - Mais surpreendente é Anésia Machado, que neste ano de 22 recebeu seu brevê de aviadora; surpreendem-me ainda Tarsila do Amaral ou Alda Garrido; e até mesmo Olívia Penteado, cuja mansão no centro da cidade, abriga os encontros dos ousados (e pobres...- riu ela) artistas modernistas...
Estavam diante da Capela do Hospital Santa Catarina e o Fantasma aspirou com gosto o perfume das rosas. O famoso jardim do hospital vivia florescido, como por milagre, o ano todo. Mas ali, naquele quarteirão, o perfume das rosas da Irmãs de Santa Catarina de Alexandria somar-se-ia ao perfume de outro famoso jardim, carregado das mesmas flores: o da Casa das Rosas (tão querida descoberta do Fantasma) que seria erguida quase em frente ao hospital dali a 13 anos.
- Estamos chegando ao comecinho da avenida – disse ele. Se eu prosseguir, temo ser subitamente privado de tão estimulante companhia como a sua, senhorita Eugênia.
- O senhor só existe aqui na Paulista?
- Sim. Quando saio, desapareço e acordo noutro tempo, noutro ponto da avenida.
- O senhor pode viajar no tempo?
- É só o que tenho feito, desde que morri a 13 de junho de 1902.
- Mas...há quanto tempo o senhor viaja no tempo?
- Pela minha limitada percepção humana, já há algumas semanas. Tempo suficiente para saber toda a história relativa a esse lugar, tempo suficiente para visitar muitas almas...Mas em raras ocasiões, como esta, me é dado ser visto e poder conversar e me revelar a alguém. Até agora, cara senhorita, o diálogo só me foi possível com mulheres. Curiosamente, todas elas mulheres de coragem, determinadas e de vanguarda, como a senhorita. Desejo-lhe sucesso nessa dura luta que sei que tem pela frente. Felicidades. Saúde. E alegria.
- Mas o senhor...já vai? Não. Deveria ficar uns dois meses, pelo menos até o Carnaval. O senhor viu algum carnaval aqui na Paulista? O maravilhoso corso, aquela longa fila de carros abertos e enfeitados, com lindas damas e jovens senhores, alguns escondidos pelas máscaras, as mais ricas fantasias, o delírio perfumado e tilintante dos lança-perfumes...Serpentinas e confetes pelos ares, as pessoas alegres nas calçadas, saudando os que desfilam...E as canções, cantadas em coro pela multidão.
Maria Eugênia sentiu um frio interior e notou que o Fantasma já não estava com ela. Voltou-se sobre seus passos e pôs a caminhar para casa, de onde saíra para participar da festa dos automobilistas e acabara participando da mais alucinante experiência de sua vida...
A festa perdera toda a graça.
Naquela noite Maria Eugênia sonhou que era uma borboleta voando sobre os jardins da primeira casa da Paulista, aquela quase na esquina da Campinas, a qual o Fantasma se referira. No sonho ela via claramente um pé de hibiscos vermelho-amarelados, carregados de flores, quase colado ao muro da casa, que parecia brilhar mais que as estrelas da noite de verão. Pousou sobre uma flor e, regredindo, tornou-se uma larva. Escorregou pelo galho, pelo tronco, através das raízes, pra dentro da terra. Foi indo pela escuridão até ver uma fenda brilhante e branca. Por ela, saiu dentro de um poço de pedras brancas e deslizou para dentro de um baú que estava no fundo do poço. Seus olhos de larva, viram em sonhos, os mais mirabolantes planos mecânicos...plantas de aviões, motos-contínuos, máquinas loucas, engenhocas sofisticadas mas que propunham, todas, estranhos e novos princípios na lógica da mecânica...Fascinada, examinou as plantas e os diagramas, tudo com traço muito antigo, enfeitados alguns por iluminuras e seus ouvidos de larva ouviram a voz do Fantasma da Paulista a sussurrar: Leonardo Da Vinci...
Subiu de volta à procura do Fantasma e saiu como borboleta por uma das douradas flores do hisbisco. Voou suavemente por entre os muitos e muitos jardins da Paulista e entrou pela janela do seu quarto e, caindo de volta em seu corpo, acordou assustada.
Era uma noite quente aquela de 8 de dezembro de 1922. Ano da fundação do partido comunista. Da semana de Arte Moderna. Do início da revolta tenentista... Ano em que Maria Eugênia afinal decidira que seria mesmo capaz de renunciar aos filhos e à família, mas nunca, custasse o que custasse, renunciaria do seu direito ao conhecimento.
Quando, em 2030, pouco antes da Guerra Genética. finalmente foi encontrado o baú no poço,escondido desde 1896 naquele cantinho da Paulista, abaixo de um pé de hibiscos, o mundo científico lamentou não ter descoberto mais cedo tais maravilhosos segredos. Então quase todos os novos princípios da física ali antevistos já eram de domínio de toda a comunidade científica.
Só os historiadores deliraram, uns de alegria pela absoluta novidade e seus desdobramentos; outros, de tristeza, pelo mesmo motivo e mais por terem que admitir que antes não estavam certos...Ninguém, no entanto, ficou sabendo que o baú de Leonardo Da Vinci, alvo de disputas entre os museus, sensação arqueolóica, inspirara em sonhos uma das mais importantes cientistas do século XX, brasileira desconhecida dos próprios brasileiros, radicada e aplaudida lá fora.
SEVEN Pauliceia: Bom dia. Desde já desejando Feliz Ano Novo e para dizer que amei o Fantasma da Paulista. Acabei de ler ontem para fechar o ano com chave de ouro. Impressionante a fluidez do seu texto e estilo. Fiquei apaixonado. Não vejo a hora de ler o próximo! Tudo de bom para vc! Foi uma das grandes figuras que conheci neste ano que hoje se encerra. Um bj
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