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O Poder e as Estrelas

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

Atualizado: 5 de jan.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


livro pra ler gratuitamente. Espero que gostem! 



Capítulo 1 O Sonho de Réa

 

Réa seria almirante. Era isso que ela queria e era isso que iria conquistar. Mesmo que todos estivessem contra, mesmo que até o seu companheiro estivesse contra. Era a época do boom espacial e a humanidade parecia não ter outro assunto que não as inacreditáveis conquistas espaciais. Conquistaram o espaço, mas ainda não conquistaram a consciência de que as mulheres são tão capazes quanto qualquer homem. Discriminação contra raças, credos ou sexo estava realmente fora de moda, era uma atitude considerada retrógada, antiga e burra. Mas Réa sabia, sabia na alma e na carne, que esse pensamento era apenas mais uma moda, mais uma imposição da sociedade do que de fato um sentimento no coração das pessoas. Ela mesma sabia que estava, dentro da Frota Espacial, sofrendo pela sua condição de mulher. A corporação à qual pertencia era considerada a verdadeira vanguarda da ciência e da tecnologia. Afinal, não se tinham decorrido ainda 20 anos da decifração do grande mistério da viabilidade das viagens pelo Cosmos e todas essas conquistas maravilhosas com as quais a humanidade sonhara há milênios, tudo isso, era fruto do trabalho dos cientistas, essa nova nata social que hoje influenciava o mundo, através das suas conquistas pela Frota Internacional. Réa tinha que admitir que havia sido ainda maior a conquista da união das nações. Afinal, o sonho de decifrar as estrelas passara por cima das aparentemente irreconciliáveis diferenças culturais e políticas das várias nações da Terra. Só mesmo as promessas das riquezas inimagináveis de mundos desconhecidos, (e mais o sonho atávico de decifrar o céu – reconhecia ela) podia (m) ser capaz (es) de unir seres tão diferentes e tão intolerantes, com religiões inimigas (como se Deus não fosse Um Só), culturas tão diversas e que passaram os últimos milênios apenas matando uns aos outros. Não, Réa não tinha ilusões quanto aos sentimentos que movem a Humanidade. Por isso mesmo, e por muitas outras razões mas principalmente essa, ela acreditava estar perfeitamente preparada para o almirantado.  No entanto, todos pareciam, dentro da cúpula da Frota, ignorar as suas ambições e ela só podia atribuir isso à sua condição feminina. Como se nem passasse pela cabeça daqueles homens que uma mulher pudesse atingir tal distinção. Ah, sim, haviam mulheres generais. Como ela própria. Mas almirante, nenhuma. Ainda ontem, na Grande Festa das Estrelas, evento para realmente poucas celebridades e autoridades da Frota e do mundo acadêmico, o Presidente parecia fugir dela como o diabo, da cruz.

Ele sabia, reflete ela agora, que daria um jeito de pedir seu apoio. E Réa não queria acreditar que o Presidente estivesse comprometido com seu arqui-inimigo, General Apolo. Embora seus assessores, muitas vezes, já tivessem-na alertado para isso. O general era uma velha raposa política, mas tinha sido oposição declarada quando da eleição do Presidente. Está certo, Apolo era uma força política importante, com um curral eleitoral respeitável e tinha sido o primeiro astronauta a desafiar o vento solar, o que lhe valera uma enorme popularidade na mídia mundial. Está certo que o presidente precisava dele para equilibrar as forças políticas de seu governo, mas essa necessidade seria tão grande assim? Se o presidente não o apoiasse na luta pelo almirantado, se apoiasse a ela, Réa, que estava sem dúvida mais qualificada que o seu rival, o que poderia Apolo fazer? A popularidade e o apoio do povo ao presidente eram incontestáveis e, além disso, o zé-povinho pouco se importava com o almirantado na Frota. Por que, então, o presidente negaria a ela seu apoio? Ela, inclusive, daria muito mais ibope na mídia do que Apolo, que era um ídolo, hoje, meio esquecido. Ela não. Seria a primeira mulher a ser almirante, tinha conquistado o domínio do planeta Sírius, tinha um currículo invejável, era jovem e bonita enquanto Apolo era velho e feio.

Réa tinha apenas 45 anos, contra os 135 de Apolo. Estava na flor da idade. Visto que ninguém jamais passara dos 144 anos de idade, apesar de todo o avanço das terapias genéticas, Apolo só teria...Ei! Talvez fosse isso. O General não teria mais do que 9 anos de vida, na melhor das hipóteses. E ela poderia esperar mais um pouco pelo almirantado. Ele, não. Talvez fosse por essa (piedosa) razão que o presidente fosse apoiá-lo, ao invés dela...Ah, mas ela não estava disposta, por uma razão piedosa, a renunciar às suas ambições de poder. Aliás, jamais estivera. Desde criança, Réa lutava pelo poder. Podia lembrar-se muito, muito bem. Sempre se sentira especial, desde a mais tenra idade, porque era celebrada na família como a menininha que nascera exatamente na noite da virada do milênio. Réa nascera às 00:01 do dia 1º de janeiro do ano 2000. E, diferentemente das outras pessoas, ela podia até hoje, 45 anos depois, lembrar-se de seus primeiros momentos de vida e dali para a frente. Lembrava-se muito bem de que, mal nascera, a mãe, ainda com a lembrança da dor do parto normal, a levara a sacada de seu apartamento na maternidade. Era uma noite limpa e clara, na cidade de S.Paulo, e a mãe, com ela nos braços, lhe apontara as estrelas e fizera uma prece.

Os médicos diziam que era uma ilusão, que ela, sendo um recém-nascido, não poderia sequer ter ouvido as palavras da prece de sua mãe quanto mais olhado para as estrelas. Mas a verdade é que Réa não só se lembrava da prece como também seria capaz de reproduzir o mapa celestial daquele momento. Ela se lembrava. A mãe dissera: - Oh, Senhor, eu Te agradeço por teres me dado a benção da concepção e te consagro agora, perante às estrelas e à imensidão do Universo, minha filha. Que ela sirva aos Teus propósitos e que seja a vida dela dedicada aos Teus Mistérios.

Pois é. Não era, portanto, por um mero acaso que a vida levara Réa a fazer carreira na Frota, a viver entre as estrelas.

Mas quando ainda era muito pequena e foi colocada numa escola moderna, ouviu da professora de História Geral, sobre a Pré História:

- Isso nós nunca saberemos.

E Réa sentiu, dentro de si, a certeza de que a professora poderia nunca saber, mas que ela, sim, saberia.  Depois de morta.

Sempre, sempre, a acompanhou a certeza de que saberia, de que não existia algo que o ser humano não pudesse saber, hoje, amanhã, quem sabe quando...Mas todo o conhecimento, da história, de tudo, ela sabia, tinha certeza, estava disponível em algum lugar, em alguma dimensão, ainda que além da vida.


Capítulo 2   A Base e O Planeta

 

Naquela manhã, Réa acordou muito cedo. O céu ainda tinha o avermelhado do amanhecer e algumas poucas estrelas foram visíveis por alguns minutos. Sua missão a obrigaria a deixar sua base e voar até a estação espacial n.1, a mais próxima da Terra, e visível no céu, em noites claras. Era uma enorme estrutura, quase um quinto do tamanho da lua, onde viviam centenas de milhares de pessoas, conhecida por Vênus Platinada. A estação possuía gravidade artificial e até firmamento artificial, além de atmosfera e clima controlado para reproduzir as quatro estações do ano. Lá haviam  plantações, algumas fábricas centros urbanos. Era como a Terra num outro planeta, com a diferença que não se estava sobre a superfície da estação, mas dentro dela.

A assessora pessoal de Réia, major Mel, acordara cedo também e encontram-se na sala exclusiva para café da manhã e ginástica, pouco depois do sol levantar-se no horizonte. Enquanto faziam seus exercícios cotidianos, Mel perguntou:

- É simpático o presidente, não?

- Você está querendo saber se eu falei com ele ou não? – perguntou Réa bem humorada e adivinhando as intenções da major. – Não falei. De qualquer modo, tenho certeza que Apolo ganhará o almirantado. Afinal, deve ser uma razão piedosa: ele só tem mais 9 anos de vida.

- A política do quadrante alfa é importante demais para ser entregue por piedade, general, creio que sabe disso, é claro. Você tem mais chance do que ele. Apolo é conservador e a Vênus Platinada precisa realmente de uma maior autonomia – disse Mel, com a voz alterada pelo esforço do exercício que realizava naquele momento.

- Apolo votará contra a autonomia da Vênus. Ele é de opinião que a base não deve ser considerada como um Estado independente, que deve continuar sob as antiqüíssima regras das colônias espaciais. No entanto, essa situação pode perdurar por mais 9 ou 10 anos, uma vez que apenas 20% da população da Vênus se importa com a questão.

- A vida lá é realmente melhor que a da Terra. Estão livres da maioria dos nossos problemas, eles têm razão em não se importar com o que lhes parece um mero detalhe administrativo.

- Mas nós sabemos que não é bem assim.  A Vênus funciona de fato como um estado independente mas não possui a autonomia política necessária. É um pouco absurdo isso! – disse Réa.

- Não é menos absurdo do que a situação de Cornos, ou é? – provocou Mel.

- Cornos vai ser terrível hoje! – explodiu Réia, jogando de lado os pesos e dirigindo-se para o chuveiro.

Mel a seguiu.

- Você quer repassar a pauta da reunião?

- Não obrigada. Acho que já decorei essa pauta.

- Desculpe dizer. Mas continuo acreditando que se você cedesse em alguns pontos, teria mais chance de conseguir o apoio de algumas lideranças que, justamente por causa da sua inflexibilidade, acabarão apoiando Apolo.

- Já discutimos isso antes, Mel. Eu não vou ceder nem um centímetro. No fundo, ambas as questões, a de Cornos e a da Vênus, são as mesmas, embora os contextos dos dois sejam muito diferentes. E fiz minha carreira sempre acreditando na autonomia de cada indivíduo dentro do Cosmos e do direito do indivíduo ao conhecimento de cada nação de cada planeta. Não vou ceder apenas porque isso me facilitaria o acesso ao poder que anseio. Eles vão ter que me dar o poder me aceitando exatamente como sou.

- Não é politicamente ideal, você sabe.

- Mas é o meu ideal, Mel – disse Réa abrindo o chuveiro e encerrando a discussão.

Cornos era um planeta ridiculamente próximo da terra, que passara desapercebido de todos os astrônomos por tantos séculos. Orbitava muito próximo a uma estrela de 9º grandeza, solitário. Era habitado por seres humanos, um pouco diferentes dos da Terra, em estágio primitivo de civilização, mais ou menos o equivalente aos índios brasileiros até o século XXI. Possuíam alguns instrumentos, uma escrita rudimentar e uma sociedade organizada em tribos.

Quando a Federação pousou lá sua primeira nave foi evidentemente confundida com manifestação de deuses. Os tripulantes, idolatrados. A nave, cultuada.

Em vão tentavam os terráqueos explicar (depois de três anos já haviam decifrado as línguas rudimentares das tribos) a realidade aos povos de Cornos. Para aquelas pessoas, os humanos eram deuses e pronto. A grande questão que se levantara na Federação era o nível de interferência que deveriam exercer naquele povo. Uns diziam que se deveria deixar que a evolução desses povos ocorresse naturalmente e que a Terra deveria se retirar de Cornos antes que o desastre cultural fosse maior. Afinal, naquele povo, ficaria para sempre a tradição de deuses que desceram dos céus. Outros acreditavam que a Terra deveria educar aqueles povos,levando o conhecimento científico, ignorando as tradições e crenças locais, fazendo, enfim, com que Cornos desse um salto de milênios em sua evolução natural.

Réa era partidária da segunda hipótese. Costumava dizer que bastava o que os americanos haviam feito aos seus índios, segregando-os em reservas que se assemelhavam, de fato, à zoológicos, com a hipócrita desculpa de que estavam preservando uma cultura que, na verdade, já era passado. A partir do momento, pensava ela, que Cornos entrou em contato com a superior civilização (superior em conhecimento, é bom explicar) da Terra , já dera o salto evolutivo e tinha, sim, todo o direito de usufruir do conhecimento que os terráqueos lhes poderiam proporcionar. Havia, é claro, o problema econômico, nunca declinado claramente, mas sempre presente. Quanto custaria para a Terra educar Cornos? Menos, pensava Réa, do que as riquezas naturais daquele planeta que a Terra exploraria e, na verdade, já estava explorando, contrabandeando, em tantas naves piratas, as riquezas minerais lá existentes. Seria preferível então, no entender da general, que houvesse menos hipocrisia. Os contrabandistas acabam contaminando culturalmente os nativos de Cornos e de uma maneira mais perversa se a interferência humana naquele planeta fosse direta, limpa e honesta. Poder-se-ia então calcular os custos e “cobrar” dos nativos retirando de lá as riquezas que fossem estritamente necessárias para remunerar o trabalho dos colonizadores e as despesas dessa colonização. Essas riquezas, evidentemente, gerariam, na terra, ainda mais riquezas e, desta maneira, Cornos pagaria muito bem pela aquisição do conhecimento e, em três gerações, sem dúvida, os habitantes de Cornos estariam equiparados, em way of life e conhecimento, aos habitantes da Terra.  Mas é claro que, dentro da Federação, existiam muitas idéias contrárias ao pensamento de Réa, idéias essas movidas por interesses mercenários, por pensamentos religiosos ou até mesmo por ideais.

Esta era a briga que ela estava se preparando para enfrentar hoje. A colonização de Cornos era a pauta principal, além da discussão sobre a autonomia da Vênus Platinada,  daquela reunião na base espacial, que reuniria  os representantes dos cinco grandes Blocos da Terra e alguns generais da Federação, de origens e pensamentos tão diversos.

Com tudo isso na alma, Réa embarcou na nave que a levaria à estação.

 

 Capítulo 3 - Nativos

 

O representante de Cornos tomou a palavra e sua voz era forte, firme, como deveriam ser as vozes dos homens habituados a desafiar a natureza com suas próprias mãos, pensou Reá, sem saber bem porque.

Tudo naquele ser era impressionante. Era moreno, quase passaria por um negro, na Terra, não fossem os traços delicados de seu rosto, os cabelos lisos e compridos até a cintura. Ligeiramente azulados, os cabelos. Talvez um efeito da atmosfera de Cornos, um pouco diferente do ar da Terra. Ninguém em Cornos adquirira o hábito de usar roupas, já que o clima lá era sempre ameno e não havia muito do que se proteger. Mas enfeitavam-se. E a vista daquele homem enorme, com um sexo também enorme, musculoso, coberto de adornos e sem nenhuma roupa, falando ante a nata da Federação, humanos absolutamente bem fardados e membros elegantes dos Cinco Blocos Unidos, Réa sentia um estranho desconforto. Tutôr, era o som mais próximo do nome dele que a máquina de tradução conseguia emitir.

- É muito difícil para os nossos povos – começou ele – chegar a compreender que vocês não sejam deuses. Eu mesmo, que há tanto tempo venho me acostumando à vossa presença, ainda custo a acreditar que assim seja. Visitei o seu mundo e seu povo me mostrou maravilhas que eu só julgaria possíveis aos deuses, ou, para ser sincero, nem mesmo a eles. No entanto seu povo me mostrou a história de seu mundo e eu entendi que todas essas maravilhas são conquistas que custaram muito sacrifício e sofrimento e muito, muito tempo. Aprendi que estamos, todos os nossos povos em meu mundo, num tempo que para vocês seria um passado distante.

Nesse momento a mulher que estava ao seu lado, quase idêntica a ele, distinta apenas pelo formato estrogênico de seu corpo e pela presença das diferenças sexuais, exatamente como nos humanos, ergueu a mão para fazê-lo calar-se e começou ela a falar:

- Tenho a mesma impressão do meu companheiro e quero dizer aqui que vocês nos mostraram que, num passado ainda recente, havia entre vocês, no mundo maravilhoso que criaram, alguns seres que viviam como nós vivemos em nosso mundo. Vocês o chamavam selvagens e os mantinham a parte das conquistas maravilhosas que para nós são divinas, mágicas. Vocês mesmos chegaram à conclusão de que não seria justo manter algumas tribos naquele estado apenas com a desculpa de preservar-lhes os hábitos, a cultura, como dizem vocês (e aqui ela usou a palavra terráquea pois em sua língua não havia nada que expressasse esse conceito). Pois bem, eu acredito que os seus selvagens deram esse salto, há pouco tempo, como daríamos nós hoje se vocês nos ensinassem tudo o que sabem.  Por isso, depois de pensar como vocês me ensinaram a pensar, eu cheguei à conclusão de que já que vocês descobriram o nosso mundo o certo é que ensinem ao nosso povo tudo o que vocês já sabem e não que simplesmente permitam que o meu povo continue vivendo primitivamente (como dizem vocês) e sem usufruir de todas essas maravilhas. Vocês fizeram isso com os seus selvagens durante muito tempo e não deu certo, vocês mesmos voltaram atrás e permitiram que eles se incorporassem à vossa maneira de viver.

Nesse instante, Réa refletia que aquela selvagem estava fazendo eco aos seus próprios pensamentos. Iala – esse era seu nome – dizia o que ela costuma dizer, argumentando favoravelmente à colonização completa e total assimilação dos cornianos.

- Se os seus povos chamados por vocês mesmos de selvagens, equivalentes a nós conseguiram se incorporar ao que vocês chamam de civilização (aqui ela usou de novo a palavra terráquea), nós também conseguiremos.

Então o líder religioso se ergueu para falar também:

- Sou Arvos, o sacerdorte. Não estive, como Tutôr, por tanto tempo entre a vossa civilização. Mas, a cada visita desse nosso líder, de volta à Cornos, no decorrer desse tempo em que ele era levado e trazido entre os nossos dois mundos, aprendi quase tudo o que ele sabe e, nos últimos dias, pude ver com meus próprios olhos as grandes conquistas dos terráqueos. Viajei no mar das estrelas, assustado no início por poder voar como os pássaros, emocionado até as lágrimas, depois, quando a nave mergulhou na escuridão. Entendi que nossos mundos são também bolinhas brilhantes como as estrelas, eu que pensava que elas fossem buracos no grande negrume que os deuses mandavam todos os dias para cobrir o céu, como cobrimos os nossos catres...Vi, no entanto, no mundo maravilhoso dos terráqueos que ainda existe guerra. Por mais que as tribos da Terra tenham se unido, como me explicaram, depois da conquista do espaço (que é o nome que vocês dão aos céus), as guerras e os desentendimentos ainda existem e existiram até muito pouco tempo, como me explicaram, em grande quantidade. Os terráqueos também acreditam, como eu, nos deuses. E são deuses diferentes de uma tribo para outra, exatamente como acontece com os povos do nosso mundo. Contemplei vossas armas e vosso poder e tenho consciência de que seria mais fácil para vocês, que precisam de algumas riquezas que existem no meu mundo, simplesmente nos matar. Vocês poderiam nos matar e se apoderar do nosso mundo, onde instalariam terráqueos e máquinas e tudo o que quisessem... No entanto vocês nos trouxeram aqui, a esse mundo artificial que criaram no céu, para discutir o que seria melhor para o nosso povo. Vocês são seres de bondade. Por isso, acredito que poderiam ensinar aos cornianos tudo o que sabem. E nós aprenderíamos com vocês. Nosso mundo deve ser grande, como vocês mesmo nos disseram. Nós não sabemos. Nunca ninguém tinha conseguido andar até o fim do mundo, antes de vocês chegarem e explicarem que o nosso mundo também é redondo e que andando levaríamos mais de uma vida inteira para fazer a volta completa. Se os deuses mandaram vocês para nós deve ser a vontade deles que vocês nos ensinem e, em troca, levem do nosso mundo o que quiserem e, mesmo, instalem lá povos terráqueos, construindo cidades de sonho como esse lugar ou as cidades que vi na Terra.  Se vocês são bondosos, por que se recusariam a nos ensinar a viver a vida de sonhos que vocês vivem?

- Sim – quase gritou Tutôr – a nossa tribo merece viver como vocês e mesmo as tribos contra as quais um dia lutamos, porque, vivendo como vocês, nem precisaríamos mais lutar. Todos teriam tudo.

O Almirante Dionísio, que presidia a mesa do Encontro, levantou-se:

- Chefe Tutôr, Conselheira Iala, Sacerdote Arvos, creio que deixaram clara a posição dos senhores, falando em nome de suas tribos. Esse conselho aqui reunido representa legitimamente as nações da Terra, todos aqui são membros da ONU dos Cinco Blocos Unidos e todos nós, democraticamente, discutiremos nesta semana de trabalhos, as formas mais eficientes e menos traumáticas de colonização de Cornos. O Presidente acatará a decisão desse Fórum e o que ficar aqui estabelecido será posto em prática. Ninguém, em Cornos, será obrigado a adotar a maneira de viver dos terráqueos. Não é segredo que o pequeno contato que mantivemos com suas tribos já contaminou a muitos em seu planeta. Lá hoje já existem muitas das nossas máquinas e estas foram bem aceitas pelas tribos. A influência já ocorreu, Cornos não seria mais a mesma, ainda que nós, terráqueos, nunca mais pisássemos lá. E todos aqui sabemos que isso seria impossível. Por isso, o que se coloca em pauta aqui hoje é a maneira pela qual devemos conduzir a colonização de seu mundo e não mais se devemos ou não fazer isso pois, na prática, já o fizemos e não há como retroceder. Nesse momento, eu passo a palavra aos delegados das nações que queriam se manifestar.

O primeiro a falar foi o representante da América do Norte. Ele mostrou-se preocupado com o estabelecimento de uma moeda, coisa que considerava como o primeiro passo para o início da colonização, entre povos que jamais haviam tido qualquer coisa parecida com dinheiro e que viviam em comunidades exercendo papéis pré-estabelecidos e que provinham as necessidades de todos. Não havendo em Cornos o sentido de propriedade, como fazer? Sem moeda, sem o estabelecimento do valor, como iniciar a colonização? Como, sequer, retirar as riquezas naturais desses povos? Como torná-los produtivos no sentido que a Terra entende a produtividade? Eles seriam, então, tutelados e educados para que, nas próximas gerações, fosse se estabelecendo o conceito de valor?

Depois falou o representante da Índia. Que direito teria a Terra de impor seus valores materialistas a um povo cuja pureza imaginava que o céu era um manto com que os deuses cobriam a luz para que eles pudessem repousar? E mais: que esse manto teria pequenos furos, para garantir-lhes que a luz continuava lá? Faria parte da educação dos povos de Cornos a educação religiosa? E que religião lhes imporiam? Ou lhes mostrariam todas, deixando que cada um decidisse a sua crença? Mas quem garantiria que a espiritualidade deles não fosse superior a nossa? Destruiria-se essa espiritualidade para colocar o que em seu lugar? O deus dos ingleses?

Ao delegado russo incomodava o fato de destruir uma sociedade que conseguira realizar, ainda que em moldes primitivos, a utopia socialista.

Não se deveria macular essa sociedade com o estabelecimento do princípio da propriedade que, hoje, era inexistente entre esses povos. E como colonizá-los sem fazer isso?

A discussão estendeu-se por toda a manhã. Como previra o Presidente, embora tivesse sido possível unir a terra, com todas as suas diferenças, pela causa espacial, seria muito difícil se montar uma expedição colonizadora que não esbarrasse nessas mesmas diferenças culturais, morais, sociais, políticas e religiosas.

A Terra, depois da Revolução Espacial, ficara reduzida a grandes blocos: A América do Norte (da qual se tornaram membros as distantes Austrália e Nova Zelândia), A América Latina, O Islã, A Euroniporússia (da qual fazia parte o antigo Japão, a China e a Índia) e a Grande Nação Negra. Nos últimos 20 anos, tinham ido toureando. Mas o Presidente temia que a questão corniana rachasse o tênue vínculo que a Revolução Espacial criara entre tão diferentes nações humanas. Estavam todos de olho nas riquezas inimagináveis que poderiam se esconder naquele planeta inexplorado pela mão do homem e entregue a pouco mais de mil habitantes, concentrados num único continente, divididos em tribos, tão distantes umas das outras que pouquíssimos contatos havia entre elas. Falavam línguas parecidas, o que indicava uma única raiz e suas culturas também eram, em quase tudo, semelhantes. Mas já houvera guerra entre esses povos, aparentemente por motivos fúteis.

Tutôr era o chefe da maior tribo, com 600 membros. Iala, a conselheira da tribo vizinha, com 150 e Arvos, o feiticeiro-sacerdote da terceira tribo. Se os humanos estabelecessem colônias lá, em uma única geração, os cornianos que sobrevivessem seriam completamente assimilados.

Arvos tem razão – refletia Réa durante as discussões daquela manhã – seria muito mais fácil matar todos eles e provavelmente nós acabaremos por matá-los mesmo. Certamente se miscigenação e o DNA deles será um leve traço nos futuros habitantes de Cornos. São pouco mais de mil, que espécie de colonização faremos lá, afinal? Vamos proibir humanos de fazer filhos com cornianos? Como isso seria possível?

Réa sabia agora, depois da conturbada manhã de debates, que a questão da autonomia da Vênus Platinada seria novamente protelada. Enquanto não se decidisse o destino de Cornos, ninguém queria nem ouvir falar no problema da estação espacial, embora houvessem ali muito mais gente nativa do que no planetinha recém-descoberto. Mais de 100 mil jovens, nascidos e criados na estação, contra mil habitantes de Cornos.

Sentou-se à mesa do almoço, realizado num enorme salão, para abrigar os mais de 500 representantes dos blocos presentes ao encontro, com o general Apolo, sua assistente e mais dois generais, um americano e um latino, todos devidamente acompanhados por seus assessores militares.

O mundo militarizara-se, depois da Revolução Espacial. Eles eram a nata, embora os cientistas também tivessem conseguido uma relativa força em toda a terra, graças ao milagre da união dessa classe, sempre tão individualista ao longo da História.

Réa conhecera Apolo pessoalmente na primeira missão enviada ao planeta recém-descoberto. Isso fora há três anos passados. O velho general não lhe parecera, então, tão velho. Está certo que a Medicina avançara a ponto de fazer com que os humanos atingissem, na maioria, aquela idade-limite de 144 anos e que já não se envelhecia como há apenas algumas décadas. Mas mesmo assim, era ainda impossível deter a decrepitude dos anos. Apolo parecia ter envelhecido 30 anos em 3. Quando serviram juntos, com o privilégio de serem os primeiros astronautas a posar em Cornos, a Réa surpreendera a juventude de Apolo, a quem os anos pareciam não ter tocado. Agora ele era definitivamente um homem próximo do fim, embora conservasse o porte altivo e o ar de herói que sempre cultuara.Tinham sido bons companheiros naquela missão.Ele, o mestre. Ela, a discípula. Mas agora, que era também general, Réa o encarava apenas como o adversário, o inimigo. Ele decerto a julgaria pretensiosa por querer, com apenas 45 anos, tornar-se uma almirante. Ela, no entanto, julgava-se mais que pronta para tal.

 

 4. Visão do Paraíso

 

Quando Réa desceu em Cornos, julgou estar chegando ao passado da Terra. Muito a Frota Espacial havia sondado aquele planeta antes de se decidir a enviar uma nave tripulada para lá. Já se sabia que a atmosfera era quase igual a da Terra, o clima sempre ameno, com pequenas variações de temperatura e de condições, em três estações mal definidas num ano corniano. O dia lá durava 26 horas, e o ano, 340 dias. A órbita era, em comprimento, menor do que a da Terra e o planeta estava mais próximo de sua estrela, mais fraca do que o nosso Sol. Toda a vida em Cornos, porém, era bastante semelhante ao que fora a Terra há um milhão de anos passados. O homem de Cornos era, em termos cósmicos, um recém-nascido. Quando se fizessem levantamentos arqueológicos, poderia-se precisar há quanto tempo a vida humana estava sobre aquele planeta, mas por suas condições evolutivas, semelhantes às nossas, os técnicos calculavam que o aparecimento do animal racional era muito, muito recente. Mesmo porque só haviam 3 únicas tribos e todas concentradas ainda numa área muito pequena, num único continente (Cornos tinha três grandes continentes e três oceanos). No resto do planeta, as condições de vida animal e vegetal eram de fato muito semelhantes ao que ocorrera na Terra em sua pré história.

Réa, desde que soube que haveria uma missão tripulada para Cornos, fez tudo o que estava ao seu alcance para conseguir ser escalada. Seu pai era um político importante, na época (hoje, infelizmente, estava morto) e ela convenceu-o a usar toda a sua influência no sentido de conseguir que ela fosse escolhida como membro da tripulação. Naquele ano, tinha conquistado seu primeiro comando. Era capitã de uma nave científica de exploração. Mas queria estar na nave que ia a Cornos, mesmo que numa posição menor. Capitã ela não seria mesmo, já que assumira há pouco tempo sua primeira nave. No entanto, acabara conseguindo o que queria pois tinha feito uma pós graduação em antropologia e foi designada para a equipe como comandante de reconhecimento e primeiro contato o que, no caso da primeira missão a um planeta reconhecidamente habitado por seres humanos, era mais do que ser o capitão.

A descoberta de vida humana em Cornos causara um enorme alvoroço na mídia mundial. Muitos planetas habitáveis haviam sido descobertos e três deles estavam sendo mesmo colonizados pelos terráqueos. Mas nem sinal de vida humana. Havia uma enorme variedade de flora, fauna e minerais nos planetas descobertos pelas missões da Frota e o mundo científico se exultava de admiração ante à potencialidade das novas descobertas. Agora, encontrar humanos, era o auge da excitação!

Assim, Réa foi rapidamente promovida à major e engajada na tripulação da nave Columbus como comandante da missão de reconhecimento. Era a glória! Isso, é claro, havia lhe custado bajulações sem fim, muita diplomacia, intermináveis conversas políticas, enormes dores de cabeça, uma grande dose de ansiedade e problemas psicossomáticos decorrentes. Mas valera a pena. 

 

Reá jamais poderia se esquecer da visão do paraíso. É claro que ela, antes de descer em Cronos, já vira centenas de milhares de fotos e filmes realizados pelas naves de reconhecimento, à distância. Já vira mesmo os agrupamentos humanos, em detalhes, captados pelas grandes objetivas espaciais e estudara atentamente os detalhes geográficos (ou deveria dizer cornográficos?) do planeta. Mas, absolutamente, não estava preparada para ver, pela imensa escotilha principal da nave, o verde esplendor das matas, a exuberância da natureza, os estranhos e muito grandes animais, a beleza a água límpida dos rios... Mais bela ainda foi a aterrissagem (ou deveria ser cornossagem?). Pousaram numa clareira, a poucos quilômetros de distância da aldeia de Tutôr. Embora houvessem analisado as condições da atmosfera e mesmo colhido amostras do solo, das plantas, do ar, em missões distantes, onde os humanos do planeta ainda não existiam, temiam que o contato físico pudesse transmitir vírus ou bactérias ainda não detectadas. Por isso desceram com seus trajes espaciais.  E era essa primeira visão dos terráqueos que Tutôr estava descrevendo agora, naquela almoço na Vênus Platinada, para os delegados ali presentes:

- Eu ainda não tinha idéia do que fosse o mundo de vocês, terráqueos. Nem sequer podia suspeitar que houvessem outros mundos que não aquele em que eu nascera e vivera toda a minha vida. Hoje, depois de mais de dois de seus anos, sendo esclarecido sobre as maravilhas que a Terra descobriu e conquistou, olho para aquele dia distante e penso que fomos todos muito ingênuos. Primeiro vimos aquela bola de luz descendo do céu. Jamais poderíamos imaginar que homens como nós seriam capazes de voar como os pássaros. Vimos a bola se transformar num disco brilhante e reluzente, com uma cauda de fogo. Vimos que aquilo havia descido entre as árvores a alguma distância de nossa aldeia. Ordenei que os homens e mulheres fortes da minha tribo se armassem e se dirigissem para o local onde o disco de fogo teria caído. Eu ainda não sabia, está claro, que era um veículo, uma nave. Pensávamos que talvez os deuses, da mesma maneira que nos mandavam o trovão e nos fizeram descobrir o fogo, como relatavam nossos antepassados, estivessem nos mandando uma nova descoberta.

Quando encontramos aqueles terráqueos dentro de seus trajes espaciais, só poderíamos mesmo julgar que eles fossem os próprios deuses que haviam resolvido nos visitar. Tinham rostos, como nós, embora naquele momento estivessem envolvidos pelos capacetes. Ora, se tinham rostos como nós deviam mesmo ser os deuses pois afinal todos sabemos que os deuses são feitos à imagem e à semelhança dos homens e mulheres. Nos inclinamos, em respeito aos deuses e depusemos as armas, que trazíamos, no chão da floresta.  Foi então que uma mulher se aproximou de mim, que liderava o grupo, estendeu sua mão enluvada e, tocando meu queixo, fez com que minha cabeça se elevasse e nossos olhos se encontrassem. Era uma mulher linda, eu percebi através da roupa espacial que ela vestia. E seus olhos claros, como eu nunca tinha visto, transmitiram-me a certeza de que ela viera em paz. Então ela me fez levantar, sou mais alto do que ela, e fitou-me novamente dizendo: Tutôr, nós viemos das estrelas e viemos em paz. Meu nome é Réa.

Era uma deusa e estava falando comigo! Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu ainda não sabia que os terráqueos há muito tempo nos vigiavam e que tinham feito milhares de filmes da nossa aldeia, tinham estudado a nossa língua, a decifrado e a aprendido. Como eu poderia imaginar que seres iguais a nós teriam toda essa capacidade? Para mim, vocês eram deuses. E, para ser sincero, apesar de ter passado tanto tempo entre vocês e, graças a vossa generosidade, ter aprendido tantas e tantas coisas maravilhosas, para mim vocês ainda são como deuses.

Réa podia adivinhar o desconforto de Apolo, sentado ao seu lado na mesa de almoço, por ainda não ter sido citado no discurso de Tutôr, enquanto ela, até agora, fora a principal personagem da narrativa.

O líder corniano continuou:

- O resto da história vocês já conhecem. Os terráqueos ficaram conosco muitos dias e, desde o primeiro dia, permitiram que víssemos por dentro a sua nave e foram ver por dentro as nossas casas. Explicaram que eram um povo parecido conosco, apenas muito mais velho e que não eram deuses. Nasciam e morriam, como nós, precisavam de alimento, como nós e, no começo de sua história, viveram mesmo como vivíamos nós.  Assim, depois de muita conversa, fomos trazidos para cá, para a Terra, quero dizer, três de nós, um de cada tribo para que pudéssemos aprender todas as maravilhas de vosso mundo. Agora, chegou a hora da decisão. Nesse tempo de prodígios que temos vivido entre vocês, voltamos, cada um de nós, às nossas tribos e tentamos lhes explicar um pouco do que aprendíamos aqui com vocês. O que eu tenho a dizer, em meu nome, em nome de Iala e de Arvos e de nossos respectivos povos, é que Cornos quer sim que vocês se instalem em nosso planeta. Nosso povo quer viver como vocês vivem, saber o que vocês sabem porque a vida de vocês é como um sonho para nós. Por favor, venham para o nosso planeta. Construam lá as suas cidades, levem a sua gente para lá, usem as nossas riquezas, e, em troca, nos ensinem a ser também quase deuses como vocês o são. É isso que eu queria dizer. E estou faminto!

Uma gargalhada explodiu no ambiente, ante a simplicidade do selvagem. Depois, uma salva de palmas. Mas cada um dos terráqueos ali presentes estava pensando exatamente em como explorar melhor o seu quinhão de riqueza, que poderia usufruir na colonização de Cornos.

Tutôr pensava em ser como os terráqueos, saber coisas, construir cidades, poder andar em máquinas e ter máquinas pensantes, como os computadores que conhecera.

Iala pensava em viver até a velhice, ela que nunca antes de vir à Terra, conhecera um velho, porque se morria muito jovem em Cornos, antes de embraquecerem os cabelos e enrrugarem-se as faces. Morria-se com sofrimento e doença.

Arvos pensava que, com tanto conhecimento, poderia se aproximar

muito mais dos deuses e decifrar-lhes talvez os mistérios.

Os delegados pensavam nas riquezas e Réa pensava em ser almirante.

 

5. A Voz de Deus

 

Arvos estava preocupado. Sabia que, quando os terráqueos colonizassem Cornos levariam para lá, além de seus conhecimentos, seus deuses. E Arvos passara tempo suficiente na Terra para saber que esse povo não tinha chegado a uma conclusão muito definitiva sobre os deuses. Muitas vezes ouvira-os dizer que “Deus é um só”, numa tentativa simplista de ignorar as profundas divergências religiosas que existiam entre os povos e suas crenças e religiões.

Para Arvos, Deus era a natureza. Pensava ele que o trovão, as intempéries, eram sinais dos deuses. Pensava que houvesse muitos deuses, que ele tinham criado o céu e a terra e os bichos e os seres humanos. Pensava que havia um deus para cada fenômeno e um deus para cada sentimento: a afeição, a inveja, o ódio... No entanto, na Terra, aprendera rapidamente que a natureza tinha leis e, pelo conhecimento e domínio dessas leis, os terráqueos faziam muito mais do que qualquer curandeiro corniano jamais poderia sonhar. Os poderes dos terráqueos os tornavam deuses aos olhos dos cornianos. Então, Arvos enfrentara, na Terra, seu primeiro dilema: se a natureza pode ser decifrada e suas leis quase totalmente dominadas, onde ficavam os deuses? Apenas nos sentimentos? Também não, pois os terráqueos podiam não apenas curar doenças e até mesmo eliminá-las antes que se manifestassem, mas podiam também curar sentimentos. Gente triste e mal humorada virava gente alegre tomando o que eles chamavam de “remédios”. Quando, em suas primeiras semanas na Terra, Arvos perguntou a um dos seus acompanhantes onde estavam os deuses, deram-lhe uma aula sobre religião. Uma aula que durou muitos e muitos dias. Foi levado a templos e igrejas, mas ficou ainda mais confuso. Está certo que os terráqueos construíssem casas enormes para tudo, mas por que construir casas para adorar os deuses e porque enfeitá-las com o luxo e a pompa que viu em algumas? Por que seus sacerdotes se vestiam de maneira tão diferente dos outros terráqueos? Arvos, que andava nu, podia entender os enfeites, como uma forma de diferenciar-se dos outros e de manifestar sua individualidade, mas não compreendia porque querer diferenciar dos outros os homens de deus. Não somos todos dos deuses? – perguntava-se. E os deuses não podem estar trancafiados em casa alguma. Os deuses estão nas pedras, nas árvores, nas cachoeiras, nos rios, na imensidão do mar... Ou não?

Arvos não tinha dúvidas sobre a existência dos deuses (ou seria apenas um deus? – perguntava-se ele agora). Afinal, muitas vezes vira a manifestação do sobrenatural. Por isso era um sacerdote, um curandeiro. Tantas vezes evocara os deuses, pela cura ou pela colheita, e fora, sem sombra de dúvida, atendido. Lembrava-se ainda com um certo espanto de quando a filha do chefe de sua aldeia ferira-se gravemente numa caçada e ele passara dias e dias junto dela. A pobre moça tinha hematomas em todo o corpo e uma enorme contusão no crânio. Delirava. Ardia em febre. E ele tentara de tudo: queimara as mais finas ervas, preparara as suas mais eficientes poções... Nada. A moça jazia inconsciente. Justo ela, a filha do chefe, que estava sendo treinada nas artes da governança pois, quando se fosse o líder, seria ela a sucessora e em suas mãos estariam os destinos de seu povo. Arvos tentara tudo, em vão. Depois de passar mais uma noite em claro, velando a sua menina e de não ver nela nem o mais mínimo sinal de consciência, assim que começaram a surgir as primeiras luzes da manhã, ele saiu da cabana em desespero.  Naquele tempo ele ainda pensava que a noite era um manto, cheio de pequenos furos, que os deuses estendiam sobre a terra de Cornos e julgava então que, ao amanhecer, os deuses estivessem a postos, recolhendo o grande manto da noite. Por isso, essa era a hora ideal para falar com eles. Arvos ainda não sabia o que eram as estrelas, muito mais do que buracos por onde a luz do dia escapava do manto da noite... Assim, postou-se em frente a cabana e ergueu seus braços para o céu, clamando aos deuses. Explicou a eles que suas artes eram insuficientes para curar Lana, a filha do chefe, e que ela não podia morrer ou viver para sempre naquele estado inconsciente; que ela nascera para governar o povo e que o povo ficaria órfão sem ela. Pediu, com todas as suas forças, que os deuses dessem um jeito de salvar a moça. E, para mostrar que o pedido era mesmo importante, ofereceu aos deuses, em sacrifício, um rico vaso de barro, onde preparava suas poções e que fora do avô do avô de seu avô.

Destruiu o vaso com seus próprios punhos que se feriram na operação. E retornou à cabana, certo de que fora ouvido. Qual não foi, porém, a sua surpresa ao deparar-se com Lana, de pé, meio zonza, a perguntar-lhe: - Mestre Arvos, o que foi que aconteceu comigo? Não me lembro de ter vindo dormir aqui...

Nas suas primeiras semanas na Terra, foi grande a confusão de Arvos. Tudo o que ele sabia da vida, ruía ante às descobertas dos terráqueos, ante a tudo o que lhe explicavam e ensinavam e ele, maravilhado, ia compreendendo e aceitando, pois como ousaria não acreditar nos seres que o haviam transportado por entre as estrelas e tinham sido capazes de construir um mundo louco, de sonhos, como a Terra do século XXI?

Em quase todos os lugares aonde ia Arvos em seu debut terrestre, havia música. Havia música em toda a parte, aumentando a enorme confusão de ruídos que tanto o assustara nos primeiros dias, ele que tinha ouvidos treinados para escutar as mensagens do vento, da chuva e o canto dos pássaros. Foi se acostumando, com o passar do dias, e logo já podia distinguir a música no meio da balbúrdia geral das cidades. Também faziam música em Cornos, mas essa era nada perto do que podiam produzir os terráqueos. Seus tambores e sua cunha (uma espécie de flauta) eram nada perto da variedade de sons produzidos na Terra.

Os terráqueos que eram responsáveis por ele, chamados de preceptores, o presentearam com uma máquina de fazer música que ele carregava aonde ia. Punha lá dentro uns disquinhos brilhantes e aprendeu a colocar os pequenos fones nos ouvidos. Cada tempo livre que tinha, lá estava Arvos a trocar disquinhos no seu aparelhinho, neto do walkman. Um dia, uma da sua preceptoras lhe dissera:

- Arvos hoje à noite nós vamos a um concerto.

- O que é?

- Você vai ver.

Quando os primeiros acordes da orquestra soaram, Arvos pensou que aquilo era bem melhor do que a sua maquininha de música. Lá pelo meio do concerto, os olhos marejados de lágrimas, não se conteve e gritou, para espanto dos espectadores:

- Essa é a voz de Deus!

A partir de então, além de assíduo freqüentador de concertos, Arvos começou a compreender o que os terráqueos queriam dizer ao afirmar que Deus é Um Só. Pensou então que Deus podia reunir em si todos os que até então ele julgara deuses e que só Ele poderia explicar o mistério da vida e da morte já que os terráqueos, a despeito de todas as maravilhas que eram capazes de operar, também não sabiam porque é que se nasce e para onde se vai depois que se morre.

Em poucos meses, Arvos conhecia mais música clássica do que a maioria dos terráqueos. E, quando a ouvia, na sua maquininha ou nos teatros, pensava que precisava, sim, voltar para Cornos e ensinar ao seu povo que aquela era a verdadeira voz de Deus, independente de como os terráqueos vissem Deus (e eram tantas as formas que eles faziam isso!). Mas ele, Arvos, sabia a resposta. Ele a encontrara na música que fazia o milagre de transportá-lo às mais belas obras da natureza, muito mais belas do que as obras dos homens da Terra, sem que ele precisasse sair do lugar, sem que mexesse um dedo sequer.

E, em pensamentos, ele agradecia aos terráqueos que, por mais maravilhas que houvessem criado, indubitáveis maravilhas, tinham conseguido criar, afinal, a voz de Deus. 

 

6. A Fôrma

 

Réa conseguira, afinal, tornar-se almirante. Principalmente por sua contribuição no caso de Cornos. Depois daquela primeira reunião na Vênus Platinada ela decidira que não iria permitir que os cornianos fossem geneticamente destruídos. Parecia óbvio, mas essa era uma única questão que não fora cogitada em todas as milhares de observações sobre quando, como e de que mil maneiras seria realizada a assimilação dos cornianos e a colonização de seu planeta, pela terra.

Réa sugerira, então, que os preceptores enviados a Cornos, para contato com os nativos, devessem ser casados e de meia idade e que fossem devidamente esterilizados, por opção própria, para que não pudessem, de maneira alguma, contaminar o DNA dos cornianos, pelo menos por dez gerações, uns 100 anos terrestres. Os cornianos, por outro lado, de posse de toda a tecnologia de moderna medicina terrestre, seriam estimulados a reproduzir, reduzir-se-ia a zero a mortalidade infantil entre eles e, de posse do conhecimento terrestre, a expectativa de vida deles subiria muito.

Numa espécie de tratado de Tordesilhas, o planeta seria dividido em cinco áreas em cada território com as mesmas características geográficas, para que as cinco potências da Terra tivessem igual chance de exploração de riquezas. No continente habitado se criaria uma região delimitada onde a exploração de riquezas não ocorreria e cada uma das cinco potências tinha que se comprometer a ter ali missões de transmissão de conhecimentos. Criariam-se escolas, hospitais, centros de lazer e cultura e o único e principal objetivo nessas áreas seria fazer evoluir rapidamente o povo nativo para que, daqui a 100 anos, pudessem se incorporar totalmente, tendo livre acesso a todo o planeta e podendo, inclusive,  misturar-se ao povo da Terra, como bem se lhes aprouvesse.

Foi uma semana de longas discussões de detalhes e guerra de interesses, mas a proposta de Réa, com relação a manter puro o DNA do cornianos, foi a grande sensação e a única unanimidade em todos os debates. Os terráqueos queriam, sim, a riqueza de Cornos, mas, talvez no inconsciente coletivo, temessem destruir uma raça, miscigenando-se com um número tão pequeno de seres que eram os seus únicos irmãos descobertos, até agora, na imensidão do Cosmos.

Se Réa alcançara notoriedade como uma das tripulantes do primeiro contato com os Cornianos, maior notoriedade alcançaria agora com a sua proposta de manter íntegro o DNA daquele povo.

Assim, muito a contragosto, o presidente teve que indicá-la para ser o Almirante, embora ele preferisse dar essa honra a Apolo, que só tinha mais nove anos de vida e era dono de um respeitável curral eleitoral.

De uma maneira geral, todos os delegados saíram satisfeitos da reunião em que se decidiu, na Vênus Platinada, o destino de Cornos. Os representantes do planeta também estavam felizes. O problema maior aconteceu quando se deu início às discussões sobre a autonomia da Estação Espacial.  Toda a Terra tinha participado do esforço de construir a estação e todas as cinco grandes regiões exploravam comercialmente, direta ou indiretamente, as atividades comerciais e produtivas da estação. Dar autonomia à Vênus Platinada, seria abrir mão de uma receita razoável e muitos argumentavam que essa mesma receita ainda não pagara o grande investimento feito para construir, no espaço, uma verdadeira Terra em miniatura. Réa, nessa questão, foi voto vencido.

Mas as atenções do mundo estavam voltadas para Cornos e não para a Vênus.

Réa viveu dias de glória, a agenda cheia, a mídia de todo o planeta disputando uma entrevista sua.

Depois de um dia daqueles, em que, ela sabia, estava se decidindo, nas altas cúpulas da Frota, a sua indicação para o almirantado e em que ela, tensa, passara o dia se controlando e dando mil entrevistas para veículos de todas as partes do mundo, conseguiu refugiar-se num restaurante discreto, exclusivo para oficiais da Frota e pode saborear um delicioso jantar na companhia de sua querida assessora, Major Mel. Foi a Major que notou a presença dos cornianos, numa mesa discreta, num canto do salão:

- Eles até já falam a nossa língua – disse Mel.

- São surpreendentemente inteligentes, para homens que estão pouco além da Idade da Pedra – respondeu Réa. – Talvez tenhamos, na História, menosprezado os nossos antepassados.

Nesse instante, seu comunicador pessoal tocou. Era o seu companheiro, ligando da terra:

- Meu amor, estou louco de saudades! – disse a voz do Capitão Narciso.

- Eu também – mentiu ela, que, na verdade, mal pensara nele desde que ele partira para a sua missão em Nemus 4.

- Réa, você vai conseguir o almirantado.

- Acho que sim.

- Eu acabo de pousar na Terra e acho que vou voar até aí ainda esta noite.

Réa hesitou por um instante. Seus olhos, por um segundo, cruzaram com os olhos de Tutôr, sentado à sua mesa no canto do salão.

- Você não está cansado de voar? Eu devo voltar para terra amanhã de manhã.

- Mas poderíamos ter uma noite juntos, estou louco pra te ver.

- Eu também – mentiu ela mais uma vez – mas estou extremamente cansada e amanhã, logo cedo, volto para a Terra. Me espere, amor.

O que Réa não queria confessar nem para si mesma era que, apesar dos quase vinte anos que vivera com Narciso, muito a magoara o pouco caso com que ele encarara sua luta pelo almirantado. Doera em Réa descobrir que o seu companheiro não a julgava capaz de atingir tão alto objetivo. Racionalmente, ela o perdoara. Afinal ele era um homem e homens raramente admitiam mulheres no círculo de poder, ainda que vivessem com elas. Além disso o orgulho de macho de Narciso ficara ferido ao ver sua companheira saltar do primeiro comando de uma nave à patente de major, quando da sua admissão na expedição à Cornos e, depois, apenas 3 anos depois, vê-la elevada à General. Era uma carreira rápida demais para qualquer oficial da Frota, quanto mais uma mulher. O orgulho de Narciso, ferido, deixava transparecer sua mágoa em pequenas agressões cotidianas que foram, por sua vez, ferindo Réa.

Réa e Mel coroaram seu jantar com uma magnífico licor.

- Bah. Estou cansada. Vou deitar. Você vem? – perguntou Mel.

- Acho que vou fumar uma cigarrilha ali no terraço do observatório. Quero olhar as estrelas.

- Se importa se eu me for?

- Claro que não, major, dispensada.

Réa, depois da despedida de Mel, postou-se no terraço do restaurante que tinha uma imensa clarabóia de onde se podia avistar a Terra, a Lua e as estrelas. Estava ali, a fumar, relaxando, quando o sacerdote Arvos  aproximou-se:

- Interrompo-lhe os pensamentos, general?

- De modo algum, Mestre Arvos. Eu estava apenas tentando relaxar um pouco.

- Como deve ser de seu conhecimento, general – disse Arvos fitando o firmamento- meu povo acreditava que as estrelas fossem apenas buracos que os deuses haviam feito no manto da noite. Ainda é difícil para mim, depois de todo o conhecimento que adquiri com os terráqueos, vê-las de outra forma.

- É entre elas que está o meu Lar – disse Réa, tomando subitamente consciência de que toda a sua vida havia sido pautada pelas viagens espaciais, pelas estrelas.

- Estou contente com a decisão tomada pelos terráqueos de colonizar o meu mundo e de ensinar ao meu povo toda a sabedoria que vocês acumularam. Mas, é claro que há sempre um mas, temo que algumas de nossas verdades se percam diante da força de tantas verdades que vocês tem para nos revelar.

Réa olhou para ele, espantada.

- De fato – continuou o sacerdote – há um único ponto em que eu considero que a nossa sociedade em Cornos é mais feliz do que o povo da Terra. É no que vocês chamam de amor. Eu o vi nas letras de suas músicas e até mesmo nos poucos livros que li nos computadores. Leio devagar, o general sabe que aprendi há muito pouco tempo a ler em sua língua e que me é difícil, entre tantas atividades que tenho tido entre vocês, ter tempo para a leitura. Mas, nesse tempo que passei aqui, aprendi que o amor entre machos e fêmeas é fonte de angústia para os terráqueos. Em Cornos não há esse sentimento obsessivo de posse entre os amantes. Lá, apenas amamos. E ninguém nunca nos disse, como pensam vocês, que o amor é exclusivo, que quando se ama alguém deve se amar apenas aquela pessoa. Os terráqueos sofrem quando amam e percebem que a pessoa a quem amam também ama uma terceira. Em Cornos, sabe, não temos isso. Cada amor é único, sim. Por isso podemos amar a quantas pessoas quisermos e ninguém se importa com isso. Nossos filhos, frutos do amor, são da tribo. Não são, como aqui, de um único casal. Tudo isso era muito estranho para mim, no começo. Mas agora até consigo entender. Desculpe-me se lhe digo isso, mas percebi a maneira como o general olha para Tutôr e como Tutôr olha para o general.

Réa caiu na risada:

- Mestre Arvos, eu sou uma mulher comprometida. Ainda há pouco estava falando com o meu companheiro...

- Capitão Narciso, não é?

- Ele mesmo.

- E o general o ama?

- Sim, eu o amo muito. Estamos juntos há 20 anos terrestres.

- Nunca amou outro?

- Acho que não, desde que conheci Narciso.

- Mas agora ama Tutôr?

Réa riu de novo. Agora, um riso nervoso.

- Bem...Tutôr é um homem extremamente atraente.

- Ama ou não?

- Mestre, deve saber que o amor é mais do que atração física.

- Ah, eu sei sim. Mas o que leio nos olhos de Tutôr e nos olhos do general também é.

- E o Mestre Arvos, um dos três representantes de Cornos, veio aqui para bancar o Cupido?

- O amor é uma coisa importante, general. Tão importante quanto qualquer decisão aqui tomada. Eu vi o seu amor por Tutôr e sei que ele a ama também, desde o primeiro dia em que a viu e que pensou que você era um deus. Mas se estou falando de amor é porque temo que a Terra contamine nosso povo com esse conceito torcido de amor, que acabe por estabelecer a angústia onde, hoje, só há alegria. Sabe, eu fiquei surpreso quando vi que na Terra também se faziam bolos. É claro que os bolos da terra são muito mais variados do que as simples misturas que fazemos em Cornos. Mas surpreendentemente o princípio é o mesmo. Também produzimos farinha e também a misturamos com gorduras e açucares e fermento e, no fim, todos os bolos são iguais. Nós também os assamos no calor, como vocês. E os colocamos em fôrmas, como vocês. Quando os terráqueos nos ensinarem a sua sabedoria, temo que nos coloquem em fôrmas e que nos moldem de acordo com suas crenças. Até aceito ser enformado e sair da fôrma cozido em nova forma. Só não gostaria de trocar a pureza de nossa maneira de amar, entre machos e fêmeas, pela angústia que o amor possessivo dos terráqueos cria. Penso que se o general, que é uma figura pública e cuja opinião é imitada pelos terráqueos, assumisse o seu amor por Tutôr, independente de seu amor pelo Capitão Narciso, talvez desse a nós, povo de Cornos, uma oportunidade de ter uma única fôrma onde cozinhássemos terráqueos.

Réa sentiu uma grande excitação, um rubor cobriu-lhe a face e lágrimas vieram-lhe aos olhos ante a possibilidade, antes nem sequer cogitada, de viver uma história de amor com Tutôr. Sorriu e disse:

- Eu lhe prometo, Mestre Arvos, que pensarei cuidadosamente no assunto.

- E eu lhe agradeço, general Réa, tenha uma boa noite – disse ele, virando-lhe as costas.

 

7. Transformação

 

Tutôr terminou seu jantar, pediu licença aos seus companheiros de mesa e retirou-se para os seus aposentos, invejando o Sacerdote Arvos que viu, de relance, conversando com a General Réa no terraço. Ele jamais teria coragem de aproximar-se da general, ainda que tivesse plena liberdade para isso, pois gozava, entre os terráqueos, do status de representante oficial de Cornos. Mas temia que ela lesse em seus olhos a profunda admiração, o extremo desejo, em suma, o amor que sentia por ela desde o momento em que a vira, julgando-a ainda uma deusa.

Entrou em seu quarto e foi procurar uma música suave no computador. Tutôr estava satisfeito com as decisões dos terráqueos com relação à colonização de seu planeta. Achava bom que os colonizadores ensinassem ao seu povo as maravilhas que, nesses três anos, haviam ensinado a ele. Também acreditava que seria bom que seu sangue não se misturasse aos deles por cem anos. Teriam, assim, tempo suficiente para crescer em número e preservarem-se como raça. Se tivessem filhos livremente, agora, com os terráqueos, certamente desapareciam como povo, pois os colonizadores (ele sabia) seriam em número desproporcionalmente maior, agora, em Cornos, do que os nativos. Não o preocupava a exploração das riquezas do planeta. Sabia hoje que seu mundo era grande demais para abrigar apenas pouco mais de mil seres humanos, que as suas riquezas eram grandes o suficiente para abastecer a eles próprios e aos terráqueos. Ou, ao menos, imaginava que assim fosse. E, além disso, que riqueza maior poderia seu povo querer do que adquirir, em poucos anos, todo o conhecimento que a Terra acumulara em milênios?

Ele mesmo, Tutôr, já não podia admitir voltar a viver como vivera antes da chegada de seus vizinhos espaciais. Nem mesmo podia lembrar-se claramente de como era antes. Agora, pensava, era um homem muito melhor, sabia ler e escrever, coisa que na sua tribo era prerrogativa de uns poucos sábios que passavam esse conhecimento de geração em geração. A língua e a escrita da Terra eram muito mais simples e claras do que as de Cornos. Sabia operar o computador e tinha acesso a qualquer informação. A informação, ele acreditava, era a melhor coisa da vida. Fora através dela que os humanos da Terra haviam construído aquela vida maravilhosa que ele sonhava levar para Cornos. Também aprendera – e nisso devia muito ao seu companheiro Arvos – a gostar de música. Apurara seu paladar à mesa rica e farta da Terra, aprendera os modos elegantes de comer e de portar-se socialmente. E, embora preservasse os costumes locais e usasse apenas enfeites, começava a achar que deveria vestir-se. Sim. Agora, nesse instante, decidira-se: iria vestir-se como os terráqueos. Talvez, parecido com eles, tivesse mais coragem de aproximar-se da general. Certo que ele deixara uma amante em Cornos e que a deixara na chefia da tribo, pois ela era mãe de algumas das crianças que ele fizera e era uma guerreira capaz e competente. Tutôr a amava e sentia falta dela e, sempre que voltava ao seu planeta, passava a maior parte do tempo em sua companhia, faziam amor e ficavam horas e horas conversando e ele lhe ensinava o máximo que podia dos conhecimentos que adquirira. Mas também amava a general Réa. Era um amor diferente, uma paixão mesmo, ainda não realizada e consolidada como era a sua paixão pela companheira Marla.

Tutôr sabia que estava um pouco tarde para falar com um dos seus preceptores mas agora que tomara a decisão, tinha que fazê-lo e por isso foi bater à porta dos aposentos deles. Atendeu-o Cristine, uma oficial americana, com quem ele estudava astronomia:

- Cris, desculpe-me pela hora. Mas eu preciso pedir uma coisa.

- Não tem problema, Tutôr, eu estava sem sono e resolvi assistir um filme holográfico. O que é que você precisa?

- Quero trajes terráqueos. Ternos, roupas esporte, sapatos, adornos e relógios. Eu sei que existem relógios em toda a parte mas já notei que os homens elegantes sempre os trazem no pulso.

Cristine olhou para ele espantada:

- Você quer usar roupas? O que pensaria o seu povo se visse seu líder em trajes terráqueos?

- Pensaria o que é verdade: que hoje sou mais terráqueo do que Corniano e sou exatamente aquilo que quero ser – respondeu ele, tomando consciência do que vinha sentindo há tanto tempo e nem para si mesmo o pusera em palavras.

- Bom, isso é fácil. Pela manhã, antes de embarcarmos de volta a terra, passaremos numa boa loja para homens e compraremos o básico.

- Agora.

- Agora?

- Sim, agora.

É claro que havia lojas 24 horas em uma cidade importante como a capital da Vênus Platinada e assim, antes que o relógio-computador de pulso, novinho, que Tutôr ganhara, marcasse meia noite, lá estava ele, de frente ao grande espelho, fitando o primeiro corniano em trajes terráqueos da História do Cosmos.

- Só falta ir cortar o cabelo – disse ele, visivelmente entusiasmado, para Cristine.

- Ah, isso você não deve fazer, Tutôr. Seu cabelo é lindo!

- Quero parecer terráqueo.

- Mas muitos homens da terra também usam o cabelo comprido.

- Não combina com essas roupas.

- Mas, Tutôr! – protestou ela – Você vai se arrepender depois e vai levar muitos anos para o cabelo crescer assim de novo!

Ele olhou diretamente para os olhos dela. E o que Cristine leu naquele olhar, uma profunda determinação e ao mesmo tempo uma súplica, a convenceu.

- Está bem – disse ela. No porto espacial há uma barbearia que nunca fecha.

Quarenta minutos depois o espelho da barbearia mostrava um Tutôr completamente transformado. Ele ria, feliz como um garoto.

Quando Cristine foi pagar a conta da barbearia, teve uma surpresa. Era a barbearia quem tinha que lhe pagar, já que recolhera as longas madeixas de Tutôr e, com um cabelo daquela qualidade, faria lindas perucas. Cristine julgou que a Frota Espacial não poderia receber pelos cabelos de Tutôr e, por isso, deu o dinheiro a ele, tendo o cuidado de comprar uma elegante carteira na loja mais próxima.

Depois, enquanto voltavam ao alojamento, explicou a ele como guardar as roupas e pendurá-las no cabide, tendo o cuidado de preveni-lo para que não dormisse com elas. Foi com ele até seu quarto, colocou as roupas que compraram na mala, explicando a ele como deveria dobrá-las e conservá-las limpas, usando o lavador automático que havia na maioria dos quartos de hotel e de alojamentos e, lá pelas duas da manhã, despediu-se dele com um beijo no rosto pensando que Tutôr tornara-se um homem ainda muito mais atraente, produzido daquela maneira.

Ele fechou a porta e antes de despir-se, fitou-se longamente no espelho do armário, completamente feliz. Agora era um terráqueo e tinha até mesmo o seu próprio dinheiro no bolso.

 

8. Amor Selvagem

 

Quando Réa desembarcou na Terra, vinda da Vênus Platinada, seu marido, o Capitão Narciso, a esperava no porto espacial. Ele e uma verdadeira multidão de repórteres de todo o globo. Afinal, além da notícia importante do dia anterior ( a decisão de colonizar Cornos e de como colonizá-lo, na qual Réa era a grande estrela por sua contribuição no controle genético) agora havia a sensacional decisão de um dos membros da delegação alienígena de transformar-se em um terráqueo, adotando seus trajes e corte de cabelo. Todos queriam filmar e fotografar Tutôr e, por isso, com ele como centro das atenções, ela rapidamente se desvencilhou do assédio da Imprensa e pôde correr para os braços do capitão. Dentro do abraço dele, sentiu que, afinal, estava também com saudades do companheiro, esquecendo toda e qualquer mágoa que ainda trouxesse em seu coração. Embarcaram os dois num transporte particular e, em quinze minutos, estavam entrando em casa.

- Narciso, disse ela depois do amor, você sabe que eu terei uma semana inteirinha de folga, agora que a reunião da Vênus acabou. Você vai partir logo?

- Daqui a dois dias, minha flor. Teremos dois dias inteirinhos só para nós. O que é que você quer fazer? Vamos viajar?

- Para que temos essa bela casa, se quase nunca ficamos nela? Vamos ficar aqui, Narciso,os dois dias inteirinhos. Quando você partir, eu vou começar a estruturar os planos de colonização, pelo menos no que me concerne. Com Almirantado ou sem ele, eu irei para Cornos e lá ficarei por alguns anos, você sabe.

- Pensei que você tivesse uma semana de folga.

- E tenho. Mel me livrou de todas as obrigações formais, minha agenda está limpa. O comando acha que eu mereço uns dias de paz, realmente. Mas o que mais poderei fazer, com você longe, eu ansiosa pela promoção que ainda não tenho absoluta certeza de conseguir? Só sei trabalhar, mais nada. Ainda assim talvez alguém da mídia acabe conseguindo falar comigo nessa semana, vou ter que me comunicar, também, com algumas pessoas, você sabe. Uma semana fora e posso até ser esquecida. Mas vou trabalhar daqui mesmo. Estabelecer padrões de conduta. Você pode imaginar a infinidade de detalhes que tem que ser estabelecida para iniciar um trabalho desse vulto.

- E depois que eu me for, você estará sempre com Tutôr.

- Na verdade a nossa base será estabelecida na tribo dele, que é a maior do planeta.

- Você está tendo um caso com ele?

- O que é isso, Narciso? De onde você tirou uma idéia dessas?

- Vocês desceram juntos da nave. Eu os vi conversando e, mesmo de longe, deu pra perceber a maneira pela qual ele olhava para você.

- Imagine, Narciso. Eu serei o general, ou o almirante, responsável pela colonização do planeta dele e ele é um líder, um dos representantes do seu planeta, tem família constituída lá e uma vida. Por que acha que se interessaria por mim ou eu, por um selvagem?

- Ele parecia muito mais um membro da família real britânica do que um selvagem, vestido daquele jeito. Aliás, minha cara, satisfaça-me a curiosidade: ele te atrai mais vestido ou sem roupa?

- Narciso!

- Réa, você é o meu amor querido. Eu te conheço mais do que você mesma. E eu sei que aquele selvagem a atraiu como nenhum homem, exceto eu. Vai negar?

- Não nego que ele me atrai. Mas daí a ter um caso... Imagine, nem seria possível. E politicamente seria um desastre!

- Talvez não. Lá em Cornos, segundo li numa entrevista daquele curandeiro, Arvos, o amor é livre, não existe o sentimento de posse entre os cornianos. Pelo menos lá, ninguém acharia estranho que vocês se tornassem amantes e, aqui, poderia ser um exemplo de boa convivência entre povos tão díspares.

- Até parece que você está querendo que eu tenha um caso com ele!

- Na verdade, fiquei louco de ciúmes quando vi vocês dois descendo da nave.

- Ciúmes? Você nunca teve ciúmes!

- É. Mas agora tenho, e não estou gostando nem um pouco. Afinal, eu estava com tantas saudades de você, tão desesperado para te ver e a primeira imagem que vi foi a da minha mulher olhando apaixonadamente para aquele selvagem.

- Olhando apaixonadamente? Você estava a mais de cinqüenta metros de nós e nos vendo através de um vidro. Como poderia saber se eu olhava apaixonadamente?

- Todo o seu corpo dizia isso. E pude ver muito bem. Está tudo certo, meu bem – disse ele puxando-a para perto e abraçando-a – se é tão importante para você, vá em frente. Só não sei se serei capaz de conviver com isso, de dividir a minha mulher com outro homem, ainda que de outro planeta. Esse é um risco que você terá que correr. Vamos ficar mais um longo tempo separados, você sabe que eu irei para Sirius e, quando voltar, você pode me dizer qual foi a sua decisão.

- Mas... Mas eu não me decidi a tomar nenhuma decisão! – respondeu ela, quase gritando – Eu nem mesmo tinha pensado em ter um caso com ele! Só porque ele me atrai isso não significa que eu vou trocar o meu amor por uma simples atração física! Eu amo você, Narciso! Está certo que fiquei magoada porque você não me incentivou na minha carreira mas isso também não é nada perto dos nossos vinte anos de convivência... – e, apavorada com a perspectiva de perdê-lo, jogou - ... a não ser que você esteja procurando uma desculpa para romper a nossa relação... Você tem alguém?

Ele riu:

- Tenho você, minha flor, meu amor querido. E não quero dividi-la com ninguém, está ouvindo? Com ninguém, de mundo nenhum!

Amaram-se de novo.

E passaram dois dias tranqüilos e preguiçosos, desfrutando o conforto de sua linda casa e não voltaram a falar em Tutôr embora o corniano estivesse definitivamente presente em seus pensamentos, definitivamente presente entre eles, como uma sombra, a ameaçar-lhes os vinte anos de feliz união.

 

 

Tutôr chegou entusiasmado ao seus alojamentos do QG da Frota. Tinha levado mais de duas horas para conseguir sair do porto espacial, assediado pela multidão de repórteres. Ele, de fato, não conseguia entender muito bem porque, para os terráqueos, se levantavam tantas questões apenas porque ele resolvera vestir-se. Afinal, a roupa não o mudara. O que causara grandes mudanças na alma de Tutôr fora o recente conhecimento das verdades do Universo descobertas pela Terra e transmitidas a ele, um homem simples e ignorante. A roupa era um detalhe. Mas quando ele tentava falar das transformações ocorridas em sua maneira de ver a vida, logo um repórter perguntava sobre o sapato, ou sobre a gravata ou sobre o corte de cabelo. Fora isso, estavam também interessados em saber como os cornianos reagiriam à transformação do visual do chefe da maior de suas tribos.

- Ah, eles vão cair na risada – respondera Tutôr.

Parecia, pensava ele, que os terráqueos não conseguiam entender a pouca importância que seu povo daria ao fato de ele usar ou não usar roupas.

E, com toda aquela confusão, ele perdera Réa de vista.

Tinha afinal, e talvez aqui tivesse que admitir a importância dos novos trajes, conseguido falar com ela. Aproximara-se e se desculpara por ainda não a ter cumprimentado por sua brilhante sugestão de não contaminar o DNA dos cornianos com o dos terrestres. Ele já aprendera que DNA eram aquelas coisas pequenas que todo mundo tem por dentro e que são responsáveis pelas diferenças físicas e até mentais que existem entre as pessoas. Ele, um guerreiro e líder experiente, agora ainda muito sábio graças aos novos conhecimentos, sentira-se tímido e pequeno ao conversar, olho no olho, com aquela deusa terráquea. Seu coração parecia querer saltar para fora do peito, suas mãos se umedeceram... Tutôr queria poder abraçá-la e beijá-la, ali mesmo na escada, mas sabia que isso não seria correto ante os olhos da Terra. Em Cornos, abraçar e beijar era uma coisa muito natural, corriqueira mesmo. Mas aqui eles tinham esses atos como uma coisa privada, reservada, raramente feita em público, ainda mais em momentos solenes como aquele e diante de toda a imprensa mundial. Tutôr sabia que se fizesse isso seria considerado impróprio, seria um escândalo.  Mas estava decidido a abraçá-la e beijá-la na primeira oportunidade que tivesse de estar sozinho com ela. Era difícil acontecer isso, mas ele tinha livre acesso aos corredores do QG e podia dar um jeito de ir ao gabinete dela, com qualquer pretexto e, lá, poderiam estar sozinhos e poderiam até mesmo se amar. Tutôr ansiava por esse momento, já tinha imaginado tudo mil vezes, como faria, o que diria... e sabia que era isso também que ela queria que acontecesse. Leu nos olhos dela, naquele momento em que conversavam na escada da nave. Por isso ficou triste ao saber que ela estaria fora do QG por uma semana inteira e, para consolar-se, na manhã do dia seguinte, pediu a Cristine que o levasse até a cidade para que comprassem mais algumas roupas.

Tutôr estava apaixonado e queria aparecer belo e elegante para a sua amada.

Tutôr estava, de fato, tornando-se cada dia mais terráqueo.


9. A Obra

 

Um enorme edifício fora erguido na periferia da tribo de Tutôr, onde funcionava o QG da Frota Espacial em Cornos. Dali eram controladas as expedições exploratórias que se instalavam nos continentes desabitados e ali alojavam-se não só os altos oficiais responsáveis por toda a missão como, num pequeno anexo, a legião de casais que tinham por missão ensinar aos cornianos os conhecimentos básicos de ciências, história da terra e conhecimentos gerais para a vida prática, como culinária e nutrição, marcenaria e engenharia básica.

Ao contrário do que pensara o delegado americano, quando da conferência na Vênus Platinada, não se havia, ainda instituído uma moeda nas tribos de Cornos. Ficara estabelecido que todos os nativos teriam direito a usufruir da energia elétrica, computadores e rede de comunicação, saneamento básico, água encanada, escola e hospital. Instalaram-se lojas com todas as quinquilharias imagináveis, de roupas a brinquedos e utensílios domésticos, que estariam ao alcance do cornianos mediante os vale-escola, que eram recebidos por eles de acordo com sua evolução nos estudos e que podiam ser trocados por mercadorias na lojas. Era a introdução de um conceito de valor, de moeda.  Mas como não havia naquele povo a idéia da posse o que ocorria na prática e que todos usavam tudo o que teoricamente seria de outros e ninguém se importava ou brigava por isso.

Junto ao anexo-residência dos professores, ficava a escola central, mas haviam outras, estrategicamente localizadas perto das cabanas que, lentamente, foram sendo substituídas por casas construídas pelos colonizadores. Também foram instaladas usinas de geração de energia elétrica e solar, bem como central de informática e estação de tratamento de água.

Os cornianos estavam deslumbrados. Em pouco menos de um ano terrestre, as aldeias se transformaram em cidades e muitos dos nativos, a exemplo de Tutôr, vestiam-se agora como os terráqueos.

Sua nova vida os deslumbrava. Não precisavam mais sofrer dores, morrer precocemente de doenças, não precisavam mais caçar, lutar, plantar. Tudo, inclusive os alimentos, era fornecido pelos terráqueos e, aos poucos, como acontecera com os três representantes que passaram três anos na Terra, eles foram aprendendo a realidade do universo, das estrelas, da vida. Passavam horas e horas, encantados, diante dos computadores ou assistindo filmes holográficos. E todos iam à escola com duplo prazer: primeiro, de entender as coisas; segundo, de adquirir mais bugigangas que, afinal, eram compartilhadas por todos.

É claro que houveram alguns nativos que resistiram às mudanças e preferiram manter seu velho estilo de vida. Mas mesmo esses acabaram cedendo diante da primeira doença que tiveram curada pelos terráqueos, ou diante dos filmes holográficos, que todos adoravam.

Mas Tutôr não era feliz. Desde o dia em que tentara, ainda na terra, beijar e abraçar a general e ela o repelira, uma coisa começara a comê-lo por dentro, angustiando a sua alma. Por que ela o repelia se, ele tinha certeza, também o queria?

Agora, que a cidade estava construída e os terráqueos controlavam tudo, a ele cabia apenas o papel de líder decorativo. Era um porta voz da decisão dos terráqueos, que, é verdade, viviam convocando-o para reuniões onde se decidia isso e aquilo mas Tutôr sabia que a sua liderança era nada mais do que fachada. Não que seu povo se importasse com isso ou mesmo tivesse consciência disso. Ele ia levando a vida. Seus dias eram passados entre reuniões com os colonizadores e idas à escola, onde aprimorava seus conhecimentos freqüentando essa ou aquela aula, de acordo com a sua curiosidade. Vivia com Marla, agora numa casa grande e confortável, e continuava amando e respeitando a companheira que, nos três anos que ele passara na terra, tão bem preparara seu povo para a vinda definitiva dos terráqueos. Mas queria Réa. Queria amá-la e ela apenas insistia em tratá-lo formalmente e em fingir que nada sentia por ele. Isso Tutôr não podia entender e estava decidido a nunca, nunca mesmo, aceitar.

 

Olhando o céu avermelhado do crepúsculo do céu de Cornos, Réa pensava no quanto tinha sido, até ali, bem sucedida a missão exploratória. Além das cidades que tinham construído na área habitada e preservada, todas as potências da terra estavam satisfeitas com as riquezas minerais que exploravam e, exceto por alguns acidentes isolados de naves piratas, não tinham enfrentado maiores problemas com a atividade extrativa. Também prosseguiam bem as missões arqueológicas que já tinham conseguido alguns dados importantes sobre o passado daquele planeta. Fazendas e fazendas se instalavam a cada dia nos continentes virgens e desabitados, produzindo alimentos e animais de corte não só para Cornos como para a própria terra. Usinas de geração de energia e centrais de informática se multiplicavam por todo o planeta que já possuía até uma rede de satélites de comunicação e de sondagem.  Os biólogos estavam igualmente felizes com seus estudos sobre a fauna local. Os botânicos haviam descoberto ervas e extratos que se somavam à farmacologia terrestre com excelentes resultados. Até agora haviam acontecido poucos casos sexuais entre terráqueos e cornianos mas nenhum deles, graças a Deus e às providências de Réa, resultou em gravidez. Em suma, todos estavam felizes, a mídia da Terra só tinha aplausos para a missão colonizadora, que encontrara pouquíssima, quase nenhuma mesmo, resistência entre os nativos e tudo ia às mil maravilhas. A única coisa que não ia bem era o coração de Réa. Ela agora era almirante. Aos 46 anos, uma glória inédita na história da Frota. Era responsável por toda a missão colonizadora do planeta, respeitada e venerada ali e também na Terra. Mas... Sempre há um mas, já diria o Mestre Arvos, a renúncia ao amor de Tutôr ainda lhe queimava a alma. Sonhava com ele e acordava chorando, ao perceber que tinha sido apenas mais um sonho. Sonhava que caminhavam, de mãos dadas, pelas alamedas ladeadas de hortênsias. Aquelas flores já estavam se tornando um símbolo e um cartão postal da nova cidade que se erguera na aldeia. As mulheres terráqueas haviam trazido mudas da terra e descobriu-se que as hortênsias floresciam magnificamente no solo de Cornos. Elas estavam em toda parte, agora, e delimitavam as principais alamedas asfaltadas construídas recentemente. Era por essas alamedas que ela freqüentemente caminhava com Tutôr, assumindo o seu amor por ele, em sonhos. Sonhos que sempre terminavam com a angústia de estar traindo Narciso. Nesse ano, o capitão passara seis meses em Sirius e, ao retornar, veio a Cornos e ficou com ela uma boa temporada. Freqüentemente se encontravam, em Cornos ou na Terra, e continuavam a sua relação, sem nunca falar em Tutôr, a não ser por razões políticas, conversas sobre a evolução da colonização onde ele eventualmente aparecia. Réa o repelira, com dor no coração. Renunciara a viver esse amor porque não queria por tudo a perder com Narciso. No entanto, tinha que reconhecer que amava os dois. De formas diferentes, mas era amor, sim. E o pior é que, por mais formalmente que tratasse Tutôr quando se encontravam nas reuniões do comando ou em ocasiões sociais, lia nos olhos dele a ansiedade por um amor que ele não podia entender, como ela entendia, como impossível.

Teve até aquele dia fatídico, recorda-se ela, em que Mel entrou em seu gabinete para anunciar a inesperada visita de Marla:

- General, a senhora Marla, que governou a aldeia na ausência de Tutôr, deseja uma audiência.

Réa estava ocupada com uma questão de distribuição de terras para agricultura, mapeando no computador a divisão entre as potências, mas decidiu parar para receber a companheira de Tutôr. Sabia que os cornianos não gostavam de esperar, para eles nada era mais importante do que o contato entre as pessoas.

- Tudo bem. Faça-a entrar.

Era uma mulher lindíssima e ficara ainda mais bela vestida com os trajes terráqueos, os cabelos muito bem cortados, uma elegância natural e simples nos gestos:

- Almirante, é um prazer vê-la novamente – disse falando com perfeição, quase sem sotaque, a língua de Réa – e muito obrigada por me receber tão prontamente.

- Também é um prazer para mim – respondeu Réa – receber a mulher que soube tão bem governar seu povo e prepará-lo para a nossa chegada. Creio que ainda não tinha tido a oportunidade de dizer-lhe que seu trabalho, baseado nas informações de Tutôr, abriu um caminho muito mais suave para a nossa instalação aqui.

- Obrigada, Almirante. Sinto-me lisonjeada com suas palavras. No entanto – respondeu Marla, com aquela desconcertante franqueza tão comum aos cornianos – o motivo de minha visita aqui hoje não diz respeito, diretamente, às questões do meu povo. Na verdade, meu povo está muito satisfeito, e eu também, com tantos novos conhecimentos que os terráqueos tem nos proporcionado. Nossa vida, sob a sua tutela, tem sido uma vida de sonhos, de alegrias, confortos e descobertas. Mas uma coisa tem me preocupado, e tanto tem me preocupado que eu decidi trazer o problema ao conhecimento da Almirante.

- O que posso fazer por você?

- O que me preocupa é Tutôr. Ele fica alegre por ver seu povo evoluindo, como ele mesmo diz, graças aos imensos benefícios que a vinda dos colonizadores nos trouxe. Ele fica alegre com suas roupas, seus brinquedos mágicos, seu computador e sua música. Mas, no fundo, eu sinto uma grande tristeza na alma dele. Eu o conheço. Vivemos juntos há muitos anos e eu sei que há uma grande angústia, como nunca houve antes, dentro dele. Tutôr está perdidamente apaixonado pela Almirante e, nunca, entre nosso povo, aconteceu uma paixão assim não correspondida. É claro que às vezes uma mulher deseja um homem que não a quer ou um homem deseja uma mulher que não o quer. Mas isso é raro. Quase sempre dá tudo certo. E mesmo que aconteça um amor não correspondido logo aparece outro amor e a pessoa esquece aquele. Não é isso que está acontecendo com Tutôr. Ele é carinhoso e gentil comigo mas os seus pensamentos, eu sei, freqüentemente estão com a Almirante. E ele está amargurado, como dizem os terráqueos. Esse é um sentimento que eu mesma, como a maioria de nós, cornianos, desconheço, mas estou aprendendo a conhecer através dele. Por isso eu lhe pergunto, com todo o respeito, se seria assim tão difícil para a almirante receber Tutôr em sua casa e dar-lhe algumas horas de prazer e alegria? Eu sei que é tudo o que ele mais quer e isso o acalmaria e faria com que ele fosse ainda mais útil para o nosso povo, sendo de novo um homem alegre.

Réa ouvia tudo, absolutamente desconcertada. Sabia que o amor era livre entre os cornianos mas jamais pudera imaginar nada semelhante a isso. Respirou fundo e respondeu:

- Deus sabe que eu também gostaria de dar prazer ao seu companheiro. Mas nós, da Terra, não somos como vocês. O nosso amor é exclusivista e, se eu fizesse isso, causaria uma grande mágoa ao capitão Narciso, com quem eu já vivo há 21 anos. Não posso fazer isso, Marla. Não posso entristecer o meu companheiro para dar alegria ao seu.

- Desculpe, Almirante, mas eu não consigo entender porque o seu companheiro ficaria infeliz sabendo que você teve momentos felizes com Tutôr.

- Eu sei que é difícil de entender para você, Marla. A generosidade de seu povo é superior a generosidade do povo da Terra, que exige exclusividade no amor. Mas é assim que são as coisas. E eu não posso atender ao seu pedido. Procure me perdoar. Eu também amo o capitão Narciso e não posso magoá-lo. Tutôr é um homem maravilhoso e atraente mas eu não posso consumar esse amor e, saiba, também dói dentro de mim essa decisão. Mas da mesma maneira que posso viver com essa dor, Tutôr também pode.

- Tem sido difícil para ele. Talvez mais difícil do que para você. Tão difícil que eu vim aqui para pedir-lhe isso.

- Mas eu não posso atender, Marla. Sinto muito. Sinto mesmo.

Leu nos olhos dela uma profunda decepção.

- Promete pensar no assunto? Por que não conversa com o capitão Narciso, quem sabe ele entenderia?

- Prometo que vou pensar em conversar com o capitão sobre isso. Mas, Marla, isso não é assim tão importante.

- O líder do povo está entristecendo, Almirante. Isso é sim muito importante. Até agora a Terra tem nos trazido apenas alegrias. Mas quando o cornianos se apaixonarem por terráqueos e forem rejeitados, em nome dessa tal exclusividade de vocês, talvez passemos a ter problemas, problemas que antes jamais enfrentamos. Nós nunca conseguiremos entender porque alguém poderia se recusar a viver o amor, que é uma das melhores coisas da vida. Por enquanto, estamos todos ainda deslumbrados e apaixonados por essas máquinas mágicas de vocês, pela luz em nossas casas em plena noite, pelas naves que cruzam os céus e a terra, pelas roupas, pelos brinquedos...Mas quando tudo isso se incorporar a nossa rotina, quando crescerem as nossas crianças, já acostumadas a tudo isso, quererão os terráqueos nos impor a sua angústia dos amores limitados? Esse, penso eu, é o caminho mais rápido para a tristeza do corpo e da alma. Se a Almirante amasse Tutôr, terráqueos e cornianos poderiam celebrar o amor, também, entre seus povos. Seria muito bom para o futuro.

- Alguém já me disse isso, Marla.

- Foi o sacerdote Arvos, não foi?

- Sim. Foi ele, há mais de um ano.

- Um ano é tempo demais para carregar a dor de um amor não realizado.

- Marla, eu vou pensar, prometo. De fato acho que essa conquista de vocês, do amor livre, da ausência do sentimento de posse, de posse de qualquer coisa, poderia ser uma grande contribuição à sociedade da Terra. Mas como você quer que eu, apenas uma mulher, lute contra milênios de crença cultural? Toda a história da terra é baseada na luta pela posse. Posse de coisas, territórios e de pessoas. Como romper isso, Marla? Toda a nossa sociedade foi construída em cima disso, tudo o que você hoje chama de sonho, de revelação, nasceu também disso, da posse.

- Você tem poder, muito mais poder do que Tutôr. O que fizer será imitado, ainda que contestado. Una-se a Tutôr. Assuma seu amor por ele e mostre aos terráqueos que esse amor só faz bem, para você, para ele, para mim e para nosso povo. De que me serve um homem triste? De que serve, para seu povo, um líder triste? A alegria dele só será completa se ele tiver você.

Isso tudo fora há uns 10 dias passados.

Agora Réa contempla a noite que lentamente cai sobre Cornos e pensa que jamais cogitara que o seu amor também pudesse ser uma questão de estado. Certamente a Terra estava realizando uma grande obra em Cornos. Poderia Cornos realizar uma grande obra no coração dos terráqueos?

  

10. O Povo Eleito

 

Em Nova Iorque, a capital financeira da Terra, as bolsas de valores viviam ora dias de glória ora dias de pânico. A chegada de tantas novas ofertas de investimentos, que ocorriam em Cornos, com sua quase completa ausência de riscos, atraiu inúmeros novos investidores do mundo todo, mas, às vezes, fazia balançar seriamente companhias que antes eram consideradas exemplos de solidez. Cornos fornecia inúmeras novas matérias primas, oferecia novos minerais que os cientistas pesquisavam com fúria e, a cada dia, surgiam aplicações, antes impensáveis, para a riqueza que estava vindo do planeta recém explorado. Isso sem contar a área farmacológica e química. A cada descoberta de novas potencialidades dos vegetais de Cornos, a bolsa fervia, o mundo se agitava. Dos pequenos aos grandes investidores, todos sonhavam enriquecer do dia para a noite com novas descobertas vindas de Cornos. Empresas surgiam e sumiam com a mesma rapidez. Era uma verdadeira revolução econômica. E tudo isso apenas em troca de educar e “civilizar” pouco mais de mil indivíduos.

Parte da riqueza obtida pelos exploradores de todas as áreas em Cornos, ia para o próprio planeta, que possuía um subgoverno internacional e, inclusive, para o que os terráqueos apelidaram de “área neutra”, onde viviam as tribos e, agora, oficiais da frota, cientistas e professores. Réa logo se viu administrando uma fortuna considerável e não faltavam recursos para o que quer que fosse preciso construir ou estabelecer nas aldeias e imediações. Os nativos de Cornos tinham assim uma qualidade de vida muito superior à maioria dos países da Terra. Todas as suas necessidades básicas estavam supridas e todos os seus caprichos de consumo estavam ao alcance do poder aquisitivo de seus vale-escola.

Certa manhã, depois de mais um sonho angustiante com Tutôr, Réa abriu seu computador preparando-se para um dia de rotina administrativa e a tela a avisou que havia uma notícia, reproduzida pelos principais veículos de comunicação da Terra, em que ela e o planeta eram os principais assuntos.

Mal pode crer no que seus olhos viram, quando mandou abrir a notícia.

Apolo, o general que ela derrotara na luta pelo almirantado, fazia sérias críticas à sua administração da área neutra e também à sua atuação no Conselho Consultivo do subgoverno da Terra em Cornos.  Ele dizia, entre outras coisas, que os percentuais recebidos pelo subgoverno para administrar a colônia e pela área neutra eram absurdamente altos, que estavam criando, no planeta, uma sociedade muito mais rica do que a própria terra. Atacava duramente o processo de educação e assimilação dos cornianos chamando-os de “povo eleito”, clamando contra os privilégios que colonos e nativos tinham diante da real situação da absoluta maioria dos povos da Terra. Propunha que o Congresso Internacional revisse as leis que regiam as relações econômicas em Cornos e que se fizesse uma devassa na administração do planeta. Sua fúria era principalmente dirigida ao Almirante Réa, que, segundo ele, tratava os nativos como filhinhos-de-papai mimados, que tinham tudo de mão beijada e previa que as próximas gerações de cornianos, acostumadas a ter tudo sem precisar se esforçar para nada, resultasse num bando de indolentes, que não necessitam ganhar a vida com o suor do próprio rosto. Propunha, ainda, que se estabelecesse moeda real no planeta e que se designassem atividades produtivas para os Cornianos e que estes, afinal, se acostumassem com as regras de sobrevivência no mundo capitalista, uma vez que já tinham se acostumado – e rapidamente – a usufruir do que a humanidade lutara por milênios para conquistar. Referia-se à situação como O Mundo de Mamãe Réa e Seus Tutelados Malandros do Paraíso.

Réa mal podia acreditar que um general, da importância de Apolo, tivesse se referido ao trabalho de uma oficial de patente superior com tal descaso e ironia ferina. Pediu uma ligação para o seu tio, irmão de sua mãe, que era Ministro das Relações Espaciais Exteriores (cargo este que, até a descoberta de Cornos tinha sido pouco mais do que uma teoria) e também uma reunião com o alto comando da frota. Imagine, que afronta! Um subordinado não só contestando o trabalho da corporação e as decisões do mais alto comando da frota e dos Cinco Grandes como também se dando o direito de falar de um almirante naqueles termos baixos e pejorativos! Aliás, uma almirante, do sexo feminino... Porque, pensava Réa, se ela fosse um homem ele não teria coragem de atacá-la naqueles termos. Apolo era um velho decrépito, nascido numa cultura ainda profundamente machista, pois era ele no começo do século XX e já estava com 136 anos de idade.

- Ministro, senhor meu tio – disse ela, quando 4 horas depois a conexão foi estabelecida – eu apenas queria deixar claro que estamos, no subgoverno, conduzindo a colonização de Cornos conforme o que foi acordado internacionalmente na Conferência da Vênus Platinada e que, particularmente, tenho governado a área neutra também segundo os mesmos princípios.

O ministro era conhecido por seu bom humor. Era mesmo um tipo bonachão e caiu na risada, seus olhos brilharam e Réa, ante a imagem dele na tela, sentiu-se ridícula.

- Apolo conseguiu finalmente uma pequena vingança contra a Almirante Réa, hein? Não se importe com isso, minha filha. Cornos é um sucesso, a terra ficou mais rica com o trabalho de vocês, todos apóiam e está tudo certo. Mas, convenhamos, alguma oposição é sempre necessária e pode fazer o Congresso Mundial refletir sobre os rumos que se traçarão para o planeta daqui para frente.

Era incrível! Ele não só a tratava como se ela fosse uma colegial ofendida como achava bom que o Congresso repensasse as diretrizes para a colônia. Sentiu seu rosto avermelhar-se e esperou que o ministro não pudesse, pela tela, perceber o seu rubor:

- De qualquer maneira eu reafirmo que estamos conduzindo as atividades da colonização em Cornos dentro dos parâmetros que nos foram estabelecidos.

- Eu não poderia esperar outra coisa de você, minha cara Almirante e sobrinha. Não se preocupe com a velha raposa do Apolo. Deixe que ele espume a sua raiva pela boca. Na verdade, ele está morrendo de inveja de você. É bom ir se acostumando a isso, Almirante. Tenha um bom dia.

E desligou.

Quem espumava agora era Réa, de raiva e por estar arrependida de ter incomodado um ministro, ainda que fosse seu tio, com uma questão que ela deveria ter deixado passar despercebida. Dera importância demais a Apolo. Precipitara-se e merecia ser tratada como uma colegial. Logo ela, sempre tão ponderada em suas decisões.

A reunião com o comando, dois dias depois, não foi melhor. Eles julgaram que Apolo, embora sendo um membro da corporação, tinha todo o direito de fazer suas críticas e muitos eram mesmo favoráveis a vários pontos de vista do general. O máximo que ela conseguiu foi uma advertência formal ao general quanto à rispidez de suas palavras com relação a um superior hierárquico.

Sentindo-se tola, solitária e criança, naquela noite, quando voltou da Terra ao planeta e deitou-se em sua confortável cama, fitou as estrelas do firmamento de Cornos e pensou que gostaria de ter ao seu lado naquele momento os braços fortes do companheiro para envolver seu corpo cansado. Mas, estranhamente, não era a imagem de Narciso que ocupava seus pensamentos. Os braços imaginários eram os braços de Tutôr.  

Desacostumada às críticas, ela que em toda a sua vida só colecionara sucessos, sentia-se extremamente só naquele momento.

O tempo, porém, provaria que Apolo não estava totalmente errado.


 

11. A Árvore do Conhecimento

 

Apolo tornou-se o grande e feroz crítico das atividades em Cornos.Usava todo o seu poder e toda a sua influência para disseminar a idéia de que os habitantes de Cornos já haviam usufruído todos os privilégios e de todas as conquistas da humanidade e que, antes que no planeta se formasse uma geração de indolentes, era necessário transmitir aquele povo a noção da produtividade, sem a qual valor nenhum existia. A exploração das riquezas naturais de Cornos, segundo Apolo, já haviam sido pagas, e muito bem pagas, pelo extraordinário salto evolutivo de seu povo, proporcionado pelos terráqueos. Era injusto, dizia ele, que ainda houvesse miséria na Terra, enquanto um bando de nativos usufruía uma qualidade de vida inimaginável para a maioria do nosso planeta, sem fazer nenhum esforço por isso. Defendia, ainda, uma drástica redução nos impostos pagos pela Terra para explorar Cornos.

O general tornou-se assim a pedra no sapato de Reá que viu, no ano seguinte, baixarem drasticamente as suas verbas, graças ao sucesso que o discurso de Apolo encontrou entre a maioria dos Congressistas.

Não que isso fizesse grande diferença na prática para os Cornianos que já haviam se fartado de adquirir toda a sorte de bugigangas terrestres, já tinham suas casas equipadas e confortáveis, já possuíam todas as melhorias urbanas em suas aldeias e haviam conquistado uma excelente qualidade de vida. Ninguém mais morria cedo. Ninguém mais sofria com doenças. No primeiro ano, triplicou o número de mulheres grávidas e não houve nenhuma morte.

Corria o segundo ano da colonização quando Réa recebeu Tutôr, Arvos e Iala para o que seria uma reunião de rotina de avaliação da nova vida dos cornianos.

Era do conhecimento de todos que muitos habitantes haviam se afastado das escolas, por desinteresse alguns, outros por acharem que já haviam aprendido mais que o necessário e também por já não encontrarem tanto prazer em adquirir coisas através de seus vales. Todos já tinham tudo. Lentamente foram voltando a caçar e pescar, promoviam torneios e lutas para afastar o tédio e muitos baixavam aos hospitais, com ferimentos e contusões resultantes desses jogos.

Réa conversara longamente com os psicólogos comportamentais e estes haviam sugerido a ela que instituísse atividades produtivas, artesanais e que também começasse a pensar em instituir uma moeda, uma medida de valor que extrapolasse os vales-escola. Réa saíra desse encontro profundamente irritada pensando que as idéias de Apolo estavam exercendo uma maior influência do que ela gostaria.

Os três líderes, representantes de suas respectivas tribos, chegaram pontualmente às 4 da tarde ao QG da Frota Espacial.

Réa tremia sempre diante de Tutôr. A velha ferida do amor não realizado parecia nunca cicatrizar. Não incomodava, quando estava longe dele, mas vê-lo sempre era uma espécie de dor.  Ele agora era um perfeito terráqueo, pelo menos no que dizia respeito à aparência. Tinha bom gosto o raio do homem, sabia combinar as cores e os tecidos, como se sempre houvesse usado roupas. Mas havia nele uma sombra, uma gota de tristeza no olhar e, hoje, essa sombra parecia ter crescido. Arvos, que também acabara por adotar os trajes terráqueos, preferindo porém os mais esportivos, também ostentava um semblante sombrio e Iala estava menos brilhante do que sempre parecera aos olhos de Réa, embora também estivesse impecavelmente vestida, no mais puro estilo clássico, trazendo mesmo uma camélia de seda na lapela do blazer de linho.

Cumpridas as formalidades do encontro, Arvos tomou a palavra:

- Almirante, o que temos a dizer hoje não é nada fácil para nós. Só Deus sabe o quanto somos agradecidos aos conhecimentos e às riquezas sem fim que a colonização nos proporcionou. No entanto, estamos começando a perceber que tudo isso também gerou em nosso povo sentimentos que antes não existiam e com os quais não sabemos exatamente como devemos lidar, nem como enfrentá-los. Por isso somos obrigados a trazer o problema ao seu conhecimento e, mais uma vez, pedir um sábio conselho.

- Também percebo, Mestre Arvos, que muitos dos cornianos, passado o encanto das novas descobertas, mostram-se insatisfeitos e lhe asseguro que já me reuni com nossos psicólogos comportamentais e eles me deram algumas sugestões que colocarei para a apreciação dos senhores.

- Perdoe-me mais uma vez, cara Almirante. Mas eu diria que é muito mais do que uma simples insatisfação. Nosso povo, que antes tinha uma alegria natural, está se tornando amargurado. Diria que perdemos a nossa espiritualidade. Muitos de nós já nem acreditam que existam os deuses, ou mesmo um deus único, como o dos terráqueos. Tanto conhecimento, adquirido assim de uma vez, transformou a nossas mentes, nos fez negar tudo o que antes sabíamos e isso inclui a religiosidade. Mais ninguém, ou quase ninguém, aparece em nossos rituais e muitos, a maioria, zombam deles. Os renegaram como algo primitivo, do tempo em que éramos ignorantes das verdades que vocês nos revelaram sobre a vida e sobre o universo. Por outro lado, as teorias religiosas da Terra não atingem o coração de nosso povo, que, desta maneira, ficou órfão de Deus. E se tornou amargurado. Como se, todas as maravilhas que os terráqueos nos proporcionaram, nos tivessem tirado parte da alma.

- Além disso, Almirante, - disse Tutôr – o povo não tem mais razão alguma para lutar. Tudo lhes é provido. Não precisam mais caçar ou colher para conseguir alimentos. Não precisam mais lutar entre si, pois todos têm tudo o que possam desejar. Um ser humano não pode viver sem lutar. A vida é luta ou, pelo menos, assim era antes da chegada dos terráqueos. 

- Também não é mais preciso sofrer ou pedir aos deuses pelo restabelecimento da saúde – acrescentou Iala. Assim, todo o temor aos deuses desapareceu. Agora basta ir a um centro médico e todos são curados de todos os males. Perdeu-se o temor, perdeu-se a perspectiva da morte e, embora todos, terráqueos ou cornianos, sejamos mortais, todos vivem como se a morte não existisse. Por isso já não se voltam para os mistérios do viver e do morrer. Parece contraditório, mas tudo isso tirou do nosso povo a alegria de viver. Com todas as suas necessidades imediatas satisfeitas, sem ter porque lutar e, como diz Mestre Arvos, órfãos de Deus, parecem ter perdido a alegria. Já não se ouvem cantos, já não se tem a alegria da superação das dificuldades, a alegria das conquistas. Abandonaram-se as festas, os rituais e, em breve, a música das máquinas e suas imagens holográficas, cairão na banalidade, na rotina. O que restará? Como serão nossos filhos, vivendo sem tudo isso que tinham seus pais? Peço desculpas, Almirante, pois tudo o que estamos dizendo pode soar aos seus ouvidos como uma grande ingratidão a quem nos proporcionou uma vida tão cheia de maravilhas, mas estamos preocupados. Já notamos que muitos dos nossos estão se entregando a jogos violentos, outros tentam voltar ao velho estilo de vida que já não se encaixa mais nesse mundo novo; outros, ainda, estão se entregando aos prazeres enganosos das bebidas que alteram a consciência. Estamos preocupados, principalmente, com as nossas crianças e com o futuro de nosso povo.

Réa deu um profundo suspiro. Depois disse pausadamente:

- Sim, e tudo isso está acontecendo muito depressa, não é? Há mesmo uma ausência de desafios na sociedade, agora que os provemos de tudo o que é necessário para uma vida de conforto e bem estar. Por isso pensamos que se propuséssemos ao povo que colaborasse, através de trabalho regular e remunerado, para a manutenção e funcionamento de toda essa máquina que mantém os serviços e os confortos, aos poucos iríamos igualando a situação dos cornianos à situação dos terráqueos. O trabalho propõe desafios e vai remunerando, mais ou menos, de acordo com o desempenho individual.  Já demos alguns passos nesse sentido e estamos criando um programa de treinamento profissional visando mesmo a substituição dos terráqueos que hoje trabalham nos serviços públicos e no comércio por cidadãos de Cornos, que desejem exercer essas funções. Também pensamos em criar aqui, na área neutra, novas atividades produtivas, instalando fábricas e fazendas ao redor das cidades-aldeia. Enfim, lentamente, iremos fazendo com que o povo se torne produtivo.

- E também competitivo – disse Tutôr, com surpreendente lucidez.

- Não sei – disse Réa prontamente. Talvez realmente se perca essa idéia de que tudo pertence a todos, já que existirão diferenças de trabalho, posição e poder aquisitivo. Mas será um preço tão alto a pagar por tudo o que a Terra lhes proporcionou?

- Na verdade – disse Iala – nós não pensamos nas conseqüências para a mente e para o coração do povo quando aceitamos a interferência da Terra. Veja bem, almirante, eu não estou arrependida de nossa decisão e nem negando a importância do que vocês nos trouxeram. Mas é fato que nós três não paramos para pensar no preço que o nosso povo teria que pagar para ter a qualidade de vida e o conhecimento dos terráqueos.

- E lhe parece agora alto demais esse preço?

- Sinceramente não sei. – respondeu Iala. No entanto o que está feito está feito, não há como retroceder.

- Penso que o nosso povo ficará mais feliz se tiver obrigações com relação ao trabalho. – disse Tutôr – todos nós trabalhávamos muito pela sobrevivência antes dos terráqueos chegarem. E acostumaremos nossas crianças a este novo modo de vida. Todos terão porque lutar. Ainda que seja, como na Terra, a luta pela posse das coisas, pela posição no trabalho, pelo dinheiro. Nós nos acostumaremos. O que não podemos é continuar como estamos: sem deus e sem desafios.

Foi a vez de Arvos se manifestar. Levantou-se, foi até a janela e disse, fitando o horizonte:

- Sim, Tutôr. Os desafios, a luta pela posse e pela posição social certamente farão nosso povo reencontrar alguma espécie de Deus. Tudo isso gerará desejos e objetivos e, junto com eles, virá uma certa angústia e será justamente esse sentimento que fará com que as pessoas procurem algo mais, algo que só pode ser encontrado na espiritualidade, na intimidade com o sobrenatural.

- Certamente, Almirante, se o nosso povo vai contribuir com trabalho, lhe será dado dando o direito de decisão sobre os rumos da sociedade, não é? – disse Tutôr -  Certamente teremos também que participar da administração das cidades-aldeia, das atividades produtivas e teremos, como vocês tem na Terra, o direito de escolher livremente quem participará do poder.

- É claro que daremos a vocês, a medida que tudo isso se instalar, cada vez mais autonomia. Acredito que esse será um processo lento, gradual e que o acesso às posições de decisão e poder virá naturalmente. A Terra não deseja que Cornos seja eternamente uma colônia. Mesmo nos outros continentes, onde a cada dia se instalam mais e mais terráqueos e inúmeras atividades produtivas, há previsão de autonomia e governos próprios para daqui a cinco anos.

- Mas ainda há outra questão – ponderou Tutôr – que é a nossa liberdade de locomoção. É verdade que, antes de vocês chegarem, nós nem sequer sonhávamos que o mundo fosse tão grande, muito menos que existissem outros mundos. Estávamos restritos às nossas aldeias e imediações. No entanto, agora que sabemos a dimensão de nosso próprio planeta, existe em muitos de nós o desejo de conhecer outros continentes e até mesmo de fazer viagens espaciais. Porém existe a Lei dos Cem Anos, que a própria Almirante propôs para preservar-nos como raça, para que nosso sangue, misturado ao de vocês, não se perdesse.

- Isso é simples – respondeu Réa. Também já havíamos discutido essa questão. Os cornianos poderão sim viajar e será interessante até que se forme um segmento econômico de turismo, uma atividade muito produtiva e interessante. Apenas como pré-requisito para viagens os cornianos terão que se submeter a uma esterilizarão temporária. Poderão mesmo fazer amor com terráqueos, mas deverão evitar a reprodução mista, só isso.

- Bem – disse Tutôr – esperamos que todo esse plano dê certo. Nós, os líderes, vamos nos reunir com nossos conselhos das aldeias para expor todas essas questões e para que os conselheiros possam ir preparando nosso povo para as mudanças que virão. Pediríamos que nada fosse divulgado pelas redes de computadores antes que conversássemos com os conselhos e que os conselheiros consultassem suas bases.

- Ainda é muito cedo mesmo para divulgar. Precisamos estudar detalhes de como se fará essa transição – disse a almirante.

Quando todos se foram Réa se pos a refletir sobre o poder que, na sua maneira de pensar, significava muito pouco na sociedade corniana. Os três líderes que ali estiveram tinham perdido grande parte do poder sobre o seu povo, com a chegada dos terráqueos. Arvos, principalmente, perdera muitíssimo em credibilidade já que os seus milagres se tornaram nada diante do milagre do conhecimento da Terra. Tutôr, que comandava a maior das tribos, ficara reduzido a um papel quase decorativo no vulcão de transformações pelas quais passara a vida de seus comandados. Já Iala, cuja capacidade de manipulação das ervas curativas atraía indivíduos de todas as tribos, ficara praticamente sem função diante dos milagres da medicina terrestre. No entanto, eles pareciam não se importar nem um pouco com tudo isso. Continuavam preocupados com o destino de seus povos, com uma sinceridade e uma clareza desconcertantes. O que aconteceria, perguntava-se Réa, com a introdução do dinheiro nessa sociedade? Tornariam-se os cornianos individualistas e competitivos como os terráqueos? Perderiam eles a generosidade, o compartilhamento natural de todas as coisas? Muito provavelmente. E, pensando nisso, pensou na liberdade do amor entre esse povo e pensou naquela conversa que tivera, há quase dois anos, com Mestre Arvos, na sacada do restaurante da sede da conferência na Vênus Platinada.

Estava certa agora de que a generosidade de mil cornianos não contaminaria em nada o egoísmo dos terráqueos, seria exatamente o contrário.

Subitamente resolveu tomar uma decisão que há muito vinha negando ao seu próprio coração. Apertou o botão do comunicador.

- Pois não, Almirante – disse a voz delicada de Mel.

- Pergunte ao líder Tutôr se ele estaria livre para jantar em minha casa amanhã.                                                                                                                                                                                                                                                      

 

12. Amor Livre

 

Réa e Tutôr amaram-se com fúria, tanta era a sede que tinham um do outro. Depois, ele perguntou:

- Por que você me fez esperar um tempo tão longo por algo que você também desejava?

- Não queria ferir o meu companheiro.

- E hoje não o feriu?

- Certamente. Se ele souber, e eu sei que vou ter que contar, vai ficar magoado.

- Eu não consigo, por mais que conviva com vocês terráqueos, entender como alguém pode se magoar com a alegria do outro e mais ainda quando esse outro é alguém que a gente ama, quer bem.

- O amor dos terráqueos é exclusivista, Tutôr.

- Isso eu sei há bastante tempo. Mas continuo não compreendendo. E por que você mudou de idéia agora? Não vai magoar do mesmo jeito o capitão?

- Eu não sei. Talvez porque eu gostaria que os cornianos pudessem ensinar aos terráqueos essa maravilhosa e generosa maneira de amar, sem o sentimento de posse.

- Você me ama?

- Sim, eu amo você. Mas também amo o meu companheiro. Só que são coisas diferentes.

- Porque estou aqui com você e sou feliz por estar não significa que deixei de amar a Marla.

- Sim, eu entendo. Ela é a sua companheira e o que vocês viveram juntos não se pode apagar. Talvez eu não fosse para você a companheira que ela tem sido. Talvez você não fosse para mim o que o capitão Narciso, major – corrigiu-se ela – ele agora é major, tem sido para mim. No entanto, me parece tão natural que estejamos juntos e que amemos também outras pessoas.

- Quando o capitão, major, chegar ele vai querer duelar comigo?

Réa caiu na risada.

- Não, Tutôr. Claro que não. Eu não vou poder esconder dele, nós não temos segredos um para o outro. Mas ninguém mais usa duelar.

- Quando eu estava na Terra ouvi muitas histórias, para mim incompreensíveis, de gente que matava por amor.

- Isso são extremos, é doença. Mas Narciso vai ficar magoado e talvez até me deixe.

- Então você está correndo o risco de perder um amor só por ter assumido seu desejo por mim?

- Talvez não. Talvez ele possa viver com isso, embora tenha dito que não queria me dividir. Mas temos passado tantos períodos longos sem nos ver que eu duvido que ele não tenha feito amor, também, com alguma outra mulher. Narciso não é homem de ficar sem sexo.

- Então?

- O problema não é o sexo. É o amor. O que mexeu com ele foi pensar que eu poderia amar você, que é mais do que sexo puro e simples.

- E você me ama?

- Amo. – respondeu ela sem pestanejar – Agora mais do que antes.

- Também amo você – disse ele com singeleza – Amo você desde o primeiro dia em que a vi e que pensava que você era uma deusa. Nunca pude tirar sua imagem de minha mente e hoje estou me sentindo completo de novo. Durante todos esses anos me faltava um pedaço. Faltava você. Eu não quero mais viver sem vir aqui, sem fazer sexo com você. Como vai ser quando o major chegar?

- Não sei – disse ela com sinceridade – Realmente, não sei.

- Não poderíamos estar todos juntos?

- Como assim?

- Você, eu, Marla e o major. Será que ele gostaria dela?

Réa riu de novo:

- Vocês fazem sexo grupal?

- Quando todos querem. Será que o major gostaria de Marla?

- E Marla, gostaria dele?

- Acho que sim. O seu companheiro é um homem forte e atraente. Talvez ela goste da idéia.

- Não sei como ele reagiria a isso – respondeu Réa, ainda rindo. – Mas eu gosto da idéia.

- Que bom! – exclamou ele, puxando de novo para junto de si.

 

Quando Réa entrou no QG da Frota no dia seguinte, Mel não pôde deixar de notar a alegria de sua chefe e permitiu-se perguntar, com alguma malícia:

- Está um belo dia, não Almirante?

Lá fora, chovia a cântaros.

Réa riu:

- Sem dúvida, cara major.

E entrou na sala, cantarolando baixinho, sem perceber.

Pediu um café completo e, enquanto o saboreava, pôs-se a pensar. Na Terra, na década de 1920 e na década de 1960, ela sabia, muito se falara em amor livre e, quando ela nasceu, no ano 2000, as pessoas já não tinham tantos preconceitos sexuais. Ela mesma vivera o sexo, independente do amor, com muita liberdade. Mas, reflete ela agora, tudo isso levara aos terráqueos apenas a liberdade sexual, e, mesmo assim, uma liberdade relativa. Muitos ainda faziam do sexo, moeda. E muitos exerciam essa liberdade sob o manto da hipocrisia, freqüentemente escondendo suas aventuras de seus parceiros fixos. Amor livre era aquilo: era o que havia em Cornos. Os terráqueos nem sequer sonhavam com uma situação semelhante a dos cornianos. Em matéria de amor, todos na Terra, eram escravos e dependentes.  Arvos tinha toda a razão em temer que o conceito de propriedade, a moeda, a posse, contaminassem a extrema generosidade daquele povo. Ela mesma, agora, temia as conseqüências de ter aceitado o amor e o sexo de Tutôr. Ele era bem capaz de sair contando para toda a aldeia que amava a Almirante Réa. Marla também era capaz de comentar que seu companheiro, afinal, conseguira o que tanto queria. E como a Frota veria a sua principal mulher em Cornos envolvida com um nativo? O que diria a imprensa da Terra? E Apolo, seu arquiinimigo, usaria isso em suas bombásticas declarações à mídia? Se tentassem usar seu caso com Tutôr contra ela, deveria então se defender? Falar do amor livre que encontrara em Cornos e de como acreditava que esse era um valor corniano que não deveria se perder no contato com os terráqueos? Deveria seguir o conselho, dado há tanto tempo, por Arvos? E, ainda, com seu caso de amor tornado público, como reagiria seu querido companheiro? Sentir-se-ia humilhado e traído? Separaria-se dela? Eram muitas questões nas quais ela teria que pensar. Sentia-se, no entanto, tão feliz, tão realizada e jovem, que podia refletir sobre tudo, até sobre a eventual separação de seu amor de tantos anos, sem angústia. Mas precisaria conversar sobre todas essas questões. Com quem? Mel, talvez. Mas seria dar muita corda a uma subordinada, elas eram amigas, mas isso poderia ser intimidade demais. Com quem conversar? Com sua mãe? Não. A mãe era sábia, mas estava velha e tinha lá suas próprias atribulações, além disso acabaria aconselhando-a a renunciar a Tutôr e isso ela não estava disposta a fazer. De repente, a resposta atingiu-a como uma raio: Arvos. Era isso.

- Major Mel – disse ela ao comunicador – peça ao Mestre Arvos para vir conversar comigo quando for possível, mas com uma certa urgência.

Tinha certeza que os conselhos de Arvos seriam os mais sábios que ela poderia ter agora.

 

 13. Independência ou Morte

  

Enquanto, na Terra, Apolo desfiava seu rosário contra os privilégios dos cornianos e o desempenho da Almirante Réa, Tutôr, Arvos e Iala reuniam-se com os conselhos de suas aldeias para discutir a necessidade de uma atividade produtiva para o povo, antes que todos descambassem para os males da indolência e da ausência de sentido para suas vidas.

- É muito engraçado – protestou uma conselheira – Eu pensei que as riquezas de Cornos que os terráqueos estão levando para o seu planeta já fossem suficientes para pagar pelos conhecimentos e pelas máquinas que eles nos legaram. Agora teremos que dar a eles também preciosas horas dos nossos dias? Quem me garante que eu vou gostar disso que eles chamam de trabalho? Por mim, estou muito bem como estou. Gosto de ir às escolas deles, aprendo coisas, gosto de assistir filmes holográficos e de usufruir todo o conforto que hoje têm as nossas casas. Não está me faltando nada. O que eu acho é que eles agora querem se aproveitar de nós. Como eu já disse, não bastam as riquezas que eles estão tirando do planeta? Por que teríamos que dar-lhes também o nosso trabalho?

- Os terráqueos não precisam do nosso trabalho – explicou pacientemente Tutôr – Nós, como força produtiva, fazemos pouca ou nenhuma diferença para eles. Veja bem: ao todo, contando as crianças, somos mil e poucos seres humanos. Na terra, eles tem isso trabalhando num edifício médio e existem centenas de milhares de edifícios. Existem dez bilhões de pessoas na Terra, que é um número acima da imaginação de muitos de nós. Nosso trabalho será um bem para nós mesmos, para que não nos tornemos um povo sem sentido, sem razão para lutar. O que será de nossas crianças, num futuro próximo, crescidas numa aldeia em que não é preciso fazer absolutamente nada para ter garantidos a sobrevivência, o conforto e até o luxo? Nós não deixaremos de usufruir os impostos que a Terra paga às aldeias pela exploração de nossos recursos naturais. Apenas teremos uma vida produtiva e cada corniano, como acontece com os terráqueos, será pago numa medida equivalente ao que ele produzir. Com essa paga poderá adquirir todo o necessário para a sua vida, tudo o que hoje adquirimos com os nossos vale-escola.

- E mais ainda – explicou Iala – Deveremos pagar também pelos serviços que a aldeia nos presta: a luz que ilumina nossas casas, a energia que faz funcionar as máquinas, a água pura e livre de doenças que sai das nossas torneiras, os transportes que nos levam rapidamente aonde queiramos ir, os serviços de saúde que nos livraram de tantos sofrimentos... Todos esses são chamados serviços públicos e são administrados hoje pela Frota. Depois, nós mesmos elegeremos pessoas que serão responsáveis por arrecadar esses valores – que fazem as coisas funcionarem - e também por administrar todos esses serviços. Nós mesmos faremos tudo e os terráqueos, aos poucos, se afastarão das nossas aldeias. Seremos donos de nossos próprios narizes. Seremos adultos e não essas criancinhas tuteladas que somos agora, deu pra entender?

- E as escolas? – perguntou um conselheiro – Quem será responsável pelas escolas?

- Os adultos que quiserem continuar estudando e aprofundando seus conhecimentos poderão ser os mestres daqui a alguns anos – explicou Arvos - Ainda não sabemos nada, embora para muitos de nós esse nada já pareça uma infinidade de coisas. Na educação ainda dependeremos dos terráqueos por alguns bons anos. Ainda há muito que aprender. Mas as nossas crianças, que já crescerão estudando, terão grande chance de adquirir o mesmo nível de conhecimento dos terráqueos cultos. Eu insisto em lembrar a todos que a Terra não precisa de nós. Já disse e vou repetir: eles, com o poder que têm, seriam perfeitamente capazes de explorar o nosso planeta sem que sequer desconfiássemos disso. Poderiam eles ter nos mantido como estávamos e descer em nossos outros continentes, fazendo o que bem entendessem com o nosso mundo. Poderiam até ter nos matado, nos exterminado. No entanto, nos deram todas essas coisas maravilhosas: a saúde, o conhecimento, o bem estar e as máquinas.

- E agora querem nos dar a independência! – exclamou Tutôr.

- Como independência? Vamos ser escravos desses relógios, teremos que dar seis horas do nosso dia para o trabalho? Que espécie de independência é essa? – exclamou outro conselheiro.

- Veja bem – respondeu Tutôr – Nós, hoje, somos totalmente dependentes dos terráqueos. São eles que nos ensinam, são eles que fazem funcionar todas as coisas em nossas aldeias. Se, por absurdo, eles nos abandonassem, de nada serviriam as nossas casas, nossos computadores não funcionariam e nem mesmo a luz acenderia porque nós não saberíamos fazer nada com os objetos deles. Nós vamos, aos poucos, aprender a fazer funcionar tudo, através do nosso trabalho. Cada um poderá escolher uma atividade, de acordo com as suas aptidões e seu gosto. É claro que vai demorar um pouco. Tentaremos isso e aquilo até encontrar o nosso trabalho ideal. Mas, todos juntos, faremos tudo funcionar e, como já foi dito aqui, um dia, não precisaremos mais dos terráqueos para nada. Seremos responsáveis, novamente, pelos destinos das nossas aldeias e pelo nosso próprio destino como povo. Isso é independência. Antes, também tínhamos que trabalhar e vocês hão de convir que trabalhávamos o dia todo para ter uma vida muito inferior a que temos hoje.

- Dependíamos – disse uma conselheira – da vontade dos deuses. Hoje sabemos que os deuses não existem e eu mesma já aprendi na escola que uma boa colheita depende das condições de plantio, do alimento que se dá às plantas e dos remédios que combatem as doenças da plantação e não dos deuses. Hoje já sei que a nossa saúde ou doença não é um capricho dos deuses mas depende do que comemos ou desses bichinhos invisíveis que estão no ar e, ainda, de outros fatores. Hoje dependemos da bondade dos terráqueos. Portanto, acho uma boa idéia que, um dia, possamos usufruir tudo isso que eles nos trouxeram dependendo apenas de nosso trabalho. Acho que Tutôr tem razão. É o trabalho que nos tornará independentes.

- Mas ainda dependeremos de Deus para nascer e morrer – acrescentou Arvos.

- É verdade – disse uma conselheira. – Nem os terráqueos podem explicar porque se morre um dia e porque ninguém passa dos 144 anos deles e muito menos o que acontece depois da morte.

- São os mistérios de Deus – disse Arvos. – Por isso não devemos também nos afastar da religião, do culto ao Deus.

- Mas que Deus será esse? – desafiou o mais velho conselheiro – Na escola aprendemos que os nossos deuses não passavam de fenômenos naturais e aprendemos ainda que, entre os terráqueos, também existem vários deuses e embora muitos digam que, no fundo, Deus é um só, eles, lá na terra, também não se entendem sobre isso.

- Estávamos realmente enganados quanto à natureza dos nossos deuses – disse Arvos – mas não estávamos enganados quando acreditamos que tudo o que existe no mundo, a terra, o céu, a água, os animais, as plantas, nós mesmos e até os terráqueos e as estrelas, foram criados por Deus e só Ele pode nos dar a vida e a morte.

- Bom, estamos nos desviando do assunto principal desse encontro – interrompeu Tutôr. – A proposta da Frota é começar a treinar, nas escolas, os cidadãos de Cornos para que possamos, aos poucos, ir assumindo posições produtivas e nos tornemos, por fim, responsáveis pelas nossas próprias aldeias. Mais alguém quer fazer alguma observação antes de votarmos?

Todos votaram pela adoção do trabalho. Foi a primeira votação unânime na história dos conselhos da aldeia.

Tutôr ficou radiante de alegria e não via a hora de poder contar a Réa que seu povo queria sim aprender a ser independente.

 

14. Liderança

 

- Mestre Arvos, há dois anos atrás, você sugeriu que, se eu cedesse à atração que sentia por Tutôr, esse fato poderia ser usado para que seu povo não perdesse a generosidade no amor e até mesmo para que os terráqueos compreendessem melhor esse sentimento corniano de liberdade. – começou Réa, assim que Arvos instalou-se em seu gabinete naquela tarde chuvosa. – Como exatamente você acredita que isso tudo se processaria?

- Fico feliz em ver que a Almirante já não traz, nos olhos e na postura, o estigma do amor não realizado.

A resposta do curandeiro surpreendeu Réa. Serei assim tão transparente, pensou ela, ou esse homem enxerga além dos outros?

- Reparei – continuou ele – que na Terra os governantes freqüentemente são vistos em solenidades públicas junto de seus cônjuges. Se a Almirante e o Chefe Tutôr aparecessem juntos nos eventos públicos importantes de Cornos, a imprensa da Terra certamente se interessaria por esse fato, a Almirante seria procurada para dar entrevistas e poderia, em seus depoimentos, explicar a diferença da visão do amor que os cornianos tem em relação aos terráqueos.

- Mas, Mestre Arvos – respondeu ela – eu tenho um companheiro, estamos juntos há 22 anos.

- No entanto – argumentou ele – o major Narciso poucas vezes está presente em seu cotidiano, sempre tão ocupado com missões espaciais, e nunca participou de solenidades ao lado da Almirante. Seria bom, minha cara, que você deixasse claro à opinião pública, que ama Tutôr mas que isso não faz com que você não ame o seu companheiro. Exatamente como acontece com o chefe e sua Marla. E isso é verdade, não é?

- Sim. É exatamente isso. Mas eu não acredito que seja fácil, nem para o major e muito menos para o povo da Terra aceitar isso. O meu povo poderia entender que eu trocasse o major pelo chefe Tutôr...Mas os dois! – e Réa caiu na risada – Vão me chamar de Dona Flor e Seus Dois Maridos!

- Conheço o clássico da literatura de seu país. É Jorge Amado, não é?

- Sempre me surpreende, Mestre Arvos, a cultura que você adquiriu em apenas cinco anos.

- Isto me foi mais fácil do que será a sua missão de explicar o amor corniano aos terráqueos. Porém é justamente pela dificuldade que se justifica o seu poder. É sua responsabilidade.

- Devo isso aos cornianos, na sua maneira de ver?

- Não. Penso que deva aos terráqueos.

- Acredita mesmo que eles mudarão sua maneira de pensar, apenas por eu dar divulgação ao amor generoso de vocês?

- Não. Eu seria ingênuo se acreditasse. Mas é uma semente. E haverão outros casos, entre terráqueos e cornianos e, saiba, o meu povo não aceitará o sentimento amoroso de posse dos terráqueos. Mesmo que se desenvolva entre nós, pela adoção do conceito de trabalho e de posse das coisas, o egoísmo da Terra, ainda assim será difícil fazer os cornianos renunciarem à liberdade de amar.

- Aprendi a aceitar a realidade do amor de vocês. Agora me parece natural que eu ame Tutôr e que não tenha deixado de amar o major. Mas sei que, assumindo publicamente esse fato, ficarei muito mais vulnerável ao ataque de meus inimigos políticos, que não são poucos. Além disso, você sabe, as mulheres são livres na Terra há apenas cem anos, contra milênios de dominação que sofreram. Se eu fosse um homem e tivesse duas mulheres, todos os meus conterrâneos aceitariam esse fato como natural. Mas eu sou uma mulher e a primeira a ser Almirante na Frota Espacial.

- Todas as atitudes de vanguarda tem um preço, não é verdade, minha cara? Em matéria de amor, e só nela, os cornianos são mais adiantados que os terráqueos. Ou talvez também na questão das mulheres. Nunca houve, entre nós, qualquer diferença de posição na sociedade entre machos e fêmeas.

- É por isso, então, Mestre Arvos, que o amor é realmente livre em Cornos, não é? As mulheres nunca foram seres dominados pelos homens. Sem dominação não há posse, não há porque existir o amor exclusivo.

- Você não acredita então, Almirante, que terá o apoio maciço das mulheres terráqueas?

- De algumas sim. Mas às vezes eu penso que a maioria gosta de sua posição ainda subalterna na sociedade. Como se milênios de dominação as tivessem feito amar a condição submissa por não ter como lutar contra ela.

- Mas lutaram, não lutaram? Ou não teriam chegado onde estão.

- Como sempre, a grande maioria delas usufrui as conquistas de umas poucas que se martirizaram e até morreram por essa luta.

- Já lhe disse: é o preço da liderança. E você é uma líder.

- Parece que só me resta, então, assumir publicamente o meu amor por Tutôr, mesmo que isso magoe o meu companheiro, mesmo que até o perca, que ele me deixe, e mesmo que dê munição aos meus inimigos.

- Se o seu major amasse outra mulher, como reagiria?

- Hoje eu acharia normal. Há uns anos passados, sofreria muito.

- Peça a Deus que ele também encontre um outro amor. E não tema os seus inimigos, você nunca os temeu.

- Um deles, meu maior inimigo, Apolo, acabou vencendo, mestre Arvos. Ele tinha razão em muitas das criticas que fez à condução da colonização de seu planeta.

- Para você ver, cara Almirante, que os inimigos também têm lá a sua utilidade prática. Por isso mesmo não devemos temê-los. Mas, voltando ao nosso assunto, creio que uma boa oportunidade para Tutôr e a Almirante aparecerem juntos será o anúncio da instalação da moeda e das atividades produtivas.

- Sim. Isso acontecerá dentro de 10 dias, no máximo. Já reformulamos os currículos escolares dos cornianos adultos para iniciar os primeiros cursos profissionalizantes e, em oito meses, iniciaremos os estágios. Em um ano, instauraremos a moeda, em lugar dos vales-escola, remunerando também os estudantes desses cursos. É uma ótima oportunidade.

- O major estará em Cornos antes disso? Seria bom conversar com ele, antes que ele saiba pela imprensa.

- Ele chega amanhã – respondeu ela, sentindo um calafrio percorrer-lhe os ossos.

- Posso ser útil em mais alguma coisa?

- Obrigada, mestre Arvos. Vamos descer e tomar um café juntos, no restaurante, antes que se vá.

E, no elevador, ao lado de Arvos, Réa pensou que aquele selvagem que ela vira pela primeira vez há apenas cinco anos passados era agora, para ela, claro, objetivo e generoso como um bom pai.

 

15. Primitivo

 

Os instrutores terráqueos, que já se maravilhavam com o interesse dos cornianos em adquirir conhecimento, ficaram ainda mais encantados com a disposição desse povo para aprender as profissões. Eram alunos dedicados, atentos, aplicados. E pouco se importavam se a profissão que aprendiam ia levá-los aos escritórios de chefia ou às linhas de produção.

A ausência de ânsia pelo poder, que havia nos cornianos, sempre desconcertava os instrutores terráqueos. Para a Terra, acostumada a lutar com unhas e dentes por qualquer espécie de poder, a singeleza e a honestidade daquele povo eram realmente surpreendentes.

Réa é que andava lutando com a sua posição de privilégio, que, claro, a colocava como um alvo preferencial de todas as críticas terráqueas. Quando ela apareceu ao lado de Tutôr na cerimônia de instalação dos cursos profissionalizantes, quase ninguém deu importância ao fato, nem sequer realmente notou-se que havia  algum fato novo. Mas quando ela começou a ser vista, acompanhada por ele, em todas as ocasiões sociais e oficiais, alguém na mídia levantou a hipótese de que ali deveria ter coisa. Marisa Tourinho era repórter de uma importante rede feminina de TV, acessada pela maioria dos computadores da terra, mesmo os masculinos. Vendo ali uma oportunidade de furo, tratou de instalar-se em Cornos, na aldeia e começou a sondar. Em quatro horas, sabia de toda a história e pediu uma entrevista com a Almirante. Foi prontamente atendida:

- Então a Almirante está vivendo um caso de amor com o líder político das aldeias de Cornos?

- Estou – foi a pronta e surpreendente resposta de Réa.

- Mas a senhora não tinha um compromisso formal, de muitos anos, com o Major Narciso?

- Ainda tenho.

- Como assim?

- O Major Narciso não é uma criança. Estamos juntos há 22 anos e ele sabe que a nossa relação não será abalada apenas porque eu estou vivendo um novo amor.

- O chefe Tutôr também tem uma companheira, não tem?

- Sim, ele vive com Marla há muitos anos e tem filhos com ela.

- E tanto o Major quanto Marla aceitam passivamente que a senhora tenha um caso de amor com o chefe Tutôr?

- Aqui em Cornos não existe o amor possessivo que existe na Terra. Aqui todos são livres para amar. Simplesmente ignoram os sentimentos passionais que movem os amores terráqueos. Não existe ciúme, não existe posse. Uma pessoa que ama a outra fica feliz com a felicidade dela e, se essa felicidade também acontece através de um outro amor, está tudo mais que bem. Penso que os cornianos sejam muito mais felizes e sadios do que os terráqueos em matéria de amor. E, particularmente, fico satisfeita em estar dando essa entrevista para um veículo tão importante e líder de audiência como a sua Rede TV Mulher. Gostaria que nós, terráqueos, pudéssemos aprender com o cornianos esse amor generoso. Nós que ensinamos tanto a eles, teríamos, em contrapartida,  a aprender com eles como conseguir relações mais sadias entre os amantes hetero ou homossexuais da terra.

- Isso tudo inclui, portanto, o sexo grupal?

- Eventualmente. Em Cornos ninguém faz amor contra a sua própria vontade, como acontece na Terra em relações pervertidas em que uma das partes é forçada, como nos estupros ou na pedofilia. A sociedade corniana não apresenta esse tipo de distorção comportamental.

Na manhã seguinte, a Rede entrou no ar com a picante chamada:

- A partir das 20h00, você poderá acessar o emocionante depoimento da Almirante Réa, autoridade máxima em Cornos, que admite fazer sexo grupal com cornianos e está vivendo um picante caso sexual com o Chefe político do planeta!

A Rede de TV bateu todos os seus recordes de audiência e seu site na Internet conquistou milhões de novos seguidores. Entremeando as imagens da entrevista de Réa, outras cenas mostravam olhares e gestos carinhosos entre a Almirante e o Chefe Tutôr, em várias ocasiões, além de uma tórrida cena de amor filmada pela janela da casa de Réa, sabe-se lá quando. Havia ainda uma cena em que o Major Narciso aparecia claramente mal humorado em uma de suas recentes viagens à Cornos. Parece que Marisa Tourinho e sua equipe estavam já há algum tempo de tocaia em volta de Réa.

- “Embora a Almirante Réa afirme – era o comentário final da repórter – que assumiu a postura dos cornianos em relação ao amor livre parece, pelo que mostram as nossas imagens exclusivas, que o seu antigo companheiro, Major Narciso, não compartilha com tranqüilidade dessa mesma postura. A almirante, maior autoridade na colonização de Cornos, parece não se importar com milênios de moral de seu planeta e assume publicamente uma atitude que, embora pareça ser natural para pouco mais de mil cornianos, que até um dia desses viviam na Idade da Pedra, pode ferir os sentimentos e os princípios de muitos de seus conterrâneos. Talvez não seja suficiente para a nossa líder a fama conseguida com o fato de ser a primeira mulher a assumir tão alto posto na Frota Espacial.”

A reportagem ouviu ainda o Ministro das Relações Espaciais Exteriores que foi irreverente como de costume:

- Réa está fazendo um ótimo trabalho em Cornos. Por que se importar que a menina se divirta? A vida sexual é uma coisa de foro intímo, individual e não devemos perder tempo com isso.

Mas a mesma descontração e brincadeira não foi sentida nas lideranças religiosas do planeta, que logo viram aí uma oportunidade para citar trechos bíblicos, inclusive o Gênesis, que supostamente condenam a relação sexual fora da benção sagrada do casamento. Choveram protestos na imprensa e nas redes sociais e o principal argumento dos que reclamavam era o fato da sociedade corniana ter sido encontrada ainda no equivalente à infância da humanidade e, portanto, com a moral não devidamente desenvolvida. Os desdobramentos foram inúmeros. E Réa se viu cercada de pedidos de entrevistas e de depoimentos. O que mais a irritou foi ouvir o argumento de que ela, que estava em Cornos para colonizar e civilizar aquele planeta, tinha sido envolvida pela mentalidade primitiva de um povo primitivo que ainda não tinha vivido história suficiente para desenvolver conceitos de moral e bons costumes e que, portanto, ela se tinha deixado levar pelos mais baixos instintos do ser humano.

A coisa estava pegando fogo quando ela recebeu, em seu escritório, a comunicação de Mestre Arvos. A carinha simpática do líder religioso de Cornos, estampada na sua tela, a animou:

- A Almirante está levando, como dizem os terráqueos, chumbo grosso?

- O pior, Mestre Arvos, é estarem dizendo que esse amor generoso de seu povo é apenas primitivismo.

- Preocupa-me, Almirante, que a imprensa do seu planeta não tenha dado a devida importância a Tutôr. Ninguém o procurou para ouvir a sua opinião.

- Pois é, Mestre. Faz parte da arrogância da Terra. Ninguém vai querer saber o que ele pensa, já que ele é o primitivo, o selvagem. Um homem que acreditava que a noite era um manto, estendido pelos deuses, e cheio de furinhos, não tem muita credibilidade no meu planeta.

- Não contávamos com esse argumento do primitivismo, não é verdade, Almirante?

- Sim. Nem ponderamos essa possibilidade. Mas agora está aí, é um fato e ainda não sei como lutar contra isso. Acredito que a erudição, o conhecimento, não sejam ferramentas para se atingir a relação ideal entre seres humanos. Os instintos, a intuição também são importantes, o que os cornianos têm de sobra.

- Eu estava pensando, Almirante. Talvez se a sua assessoria de comunicação divulgasse alguns dos pontos importantes, e que a Terra consideraria produtivos, da personalidade dos cornianos...

- Por exemplo?

- A ausência de luta pelo poder e também da competição que nossos nativos têm demonstrado em sua recente aquisição de conhecimentos profissionais, a pouca importância que damos aos sentimentos de posse... Tudo isso poderia explicar melhor a nossa generosidade no amor, colocando-a como alguma coisa mais elaborada do que o simples primitivismo que nos tem sido atribuído.

- Vou colocar isso para os meus assessores, Mestre. E vejamos o que eles podem fazer.

- Confio em você, Réa. Seria bom também se conseguissem algumas entrevistas para Tutôr.

- Já tenho trabalhado nisso, Mestre Arvos. Eu o manterei informado.

- Obrigado, Almirante.

- Tenha uma boa tarde, Mestre.

 

Marisa Tourinho, a repórter da Rede de TV Mulher, iniciou uma minuciosa investigação sobre os hábitos dos cornianos, sempre partindo da tese de que aquele era de fato um povo primitivo. Colocou seus informantes para colher todo o tipo de evento ocorrido que pudesse corroborar a sua tese. Assim, ficou sabendo que muitos cornianos haviam dormido com suas roupas terráqueas e que haviam usado máquinas de limpeza para tentar limpar os corpos de suas crianças e que haviam cortado as telas de seus computadores para conseguir ver o que estava além dos limites das próprias telas, no ângulo de visão. Descobriu que muitos cornianos tentaram, em vão é claro, interagir com os filmes holográficos, fazendo perguntas ou comentários ou tentando interferir no rumo da história. Como não tinha imagens desses acontecimentos, produziu simulações com atores e o resultado foi uma seqüência de cenas ridículas que arrancaram gargalhadas homéricas dos terráqueos e mostravam os cornianos como um povo estúpido. Para não faltar com a verdade, ou pelo menos a repórter pensava assim, no final da matéria veio o comentário: “Por esses acontecimentos pode-se perceber o quanto a população de Cornos estava despreparada para usufruir as nossas conquistas. É verdade que, dois anos depois de iniciada a colonização do planeta e graças aos redobrados esforços dos preceptores terráqueos, a maioria dos cornianos já se acostumou aos confortos da nossa civilização. No entanto fica no ar uma pergunta: deveríamos nós acreditar que, de tal população ingênua e primitiva, poderiam vir exemplos de conduta social ou moral que viessem somar alguma coisa ao atual estágio de evolução da Terra?”

Réa ficou uma fera. Aquilo era com ela e com a cruzada que promovia para tentar fazer com que os terráqueos compreendessem o que os cornianos tinham de melhor: sua extrema generosidade, sua ausência de luta pelo poder, o compartilhamento das posses e das funções, com cada um simplesmente contribuindo para o funcionamento da máquina social e a maravilhosa liberdade para amar, crescer, trabalhar, prosperar. E já não lhe bastassem as ferinas declarações do general Apolo, agora vinha também essa jornalista a trabalhar na contramão de seus anseios.

Irritada, sentou-se diante da sua tela e redigiu ela própria um comunicado à imprensa:

“É inaceitável às autoridades, aos colonizadores e ao povo da Colônia do Planeta Cornos que certos setores da Imprensa venham à público com tentativas baixas de reduzir os nativos cornianos a pouco mais do que seres idiotizados. Nós, que moramos aqui na Área Restrita, e temos o enorme privilégio de conviver com este povo sabemos o quanto eles nos têm ensinado em matéria de relacionamento humano. Os nativos de Cornos não possuem, como nós terráqueos, o individualismo pouco generoso que caracteriza a maioria das nossas sociedades. Não tendo sentimento de posse, alcançaram uma organização social onde cada um trabalha pelo bem de todos, pensando que também cada um será beneficiário das conquistas coletivas. Para um povo que mal elaborara uma escrita, o nível de conhecimento adquirido nesses dois anos é surpreendente. Na verdade, Cornos realiza o que na Terra sempre foi utopia: o compartilhamento das riquezas, o ideal comunitário, a ausência de luta pelo poder e a liberdade no amor. Ao menos nesses itens são eles, os cornianos, que têm sim muito a ensinar a nós, terráqueos, com a  extrema generosidade deles, quase sempre ausente das nossas relações sociais.

A prepotência dos que tentam denegrir publicamente a imagem da sociedade corniana deve ser resultado de um profundo sentimento de frustração por identificar num grupo humano a realização pura e simples do que, na nossa História, sempre classificamos como utopia, ideais sonhadores e sem possibilidade de concretização. A sociedade corniana, a despeito de seu atraso técnico em relação à terráquea, alcançou um grau de civilidade que nós nunca conseguimos na longa trajetória dos humanos sobre a Terra. Ou, talvez, num passado distante, tenhamos perdido, ao comer os saborosos e envenenados frutos das árvores do conhecimento.

Almirante Réa, Comandante da Missão Colonizadora da Área Neutra de Cornos.

Alto Escalão da Frota Espacial.”


16. O Paraíso Refeito

 

A Rede de Tv Mulher tinha uma concorrente que a seguia de perto, a Rede Vitória, que se especializara em divulgar notícias boas, ao contrário do que a Imprensa fizera desde a sua fundação. Surpreendentemente e contraindo os prognósticos de muitos jornalistas ilustres que afirmavam que as pessoas só se interessam pela desgraça alheia, a Rede Vitória, em apenas cinco anos de atividades, alcançou o segundo lugar de audiência em todo o mundo, transmitindo apenas as boas notícias e os grandes feitos da humanidade. O diretor da rede viu em Cornos uma tremenda possibilidade de comprar, e ganhar, uma boa briga, com sua arquiinimiga, a TV Mulher. Assim, deslocou para o planeta uma equipe de repórteres e técnicos encarregada de trazer as melhores notícias do progresso da colonização, sempre mostrando os ângulos mais positivos da sociedade corniana e os progressos que estava aquele povo fazendo graças aos conhecimentos a ele transmitidos pelos preceptores terráqueos e ao imenso salto de qualidade de vida que dera, gozando da tecnologia e da ciência da Terra.

O resultado foi excelente, a reportagem bateu de longe a concorrente e elevou novamente a Almirante Réa a condição de heroína. É claro que, ao contrário do que acontecera com a matéria da concorrente, a Rede Vitória contou com a extrema boa vontade de todos os que trabalhavam na Área Neutra e a Frota Espacial colocou seus inúmeros recursos à disposição da equipe para que fizessem todas as imagens e entrevistas que desejassem.

Com três horas de duração, o documentário sobre a Área Neutra de Cornos mostrava o alto nível de urbanidade que havia, em dois anos, adquirido as aldeias, antes um amontoado primitivo de casas toscas e pequenas plantações. Trazia ainda imagens do interior das novas habitações cornianas, todas absolutamente asseadas e dispondo dos mais modernos equipamentos domésticos, inclusive com acesso à rede mundial de computadores (que agora deveria ser chamada rede interespacial). Mas mostrava principalmente o caráter dos cornianos. Um povo absolutamente pacífico e cordial, com uma incrível capacidade de adaptação e aprendizado. Enfatizando a ausência de espírito competitivo e, ao contrário, uma maravilhosa tendência para a cooperação, enfocava inclusive engraçadas passagens da reação corniana ante à manifestação de raiva ou desagrado dos terráqueos. Os habitantes da Terra, escolhidos para preceptores e funcionários administrativos da Área Neutra possuíam todos uma personalidade tranqüila e calma e isso fora absolutamente intencional para evitar grandes conflitos com os nativos. Mas, mesmo assim, diante de dificuldades e imprevistos, às vezes perdiam a calma. A reação dos cornianos, nessa situação, era sempre cair na risada. Era impensável para eles que qualquer tipo de manifestação negativa pudesse colaborar para a resolução do problema que se apresentava. Mesmo as poucas lutas que houveram, no passado, entre as tribos, não tinham exatamente um objetivo bélico, eram mais como jogos onde eles testavam a sua força. Os cornianos, mostrava a reportagem, desconheciam o ódio ou a raiva.

O ponto alto do documentário, que teve inúmeros desdobramentos, reproduções, críticas e comentários em toda a mídia terráquea, foi a entrevista com o líder Tutôr.

- Antes de se iniciarem os trabalhos de colonização em Cornos, o senhor passou três anos na Terra e voltou de lá vestido como um terráqueo, não é verdade? – começou perguntando a repórter.

- Sim.

- O seu povo não teve dificuldades, então, para continuar aceitando a sua liderança, ao constatar que o senhor se tornara mais parecido conosco do que com eles?

- Ah – riu Tutôr – eles acharam muito engraçado. E gostaram tanto que, como a senhora pode ver, todos, quase sempre, estão vestidos à maneira da Terra. A diferença é que não damos tanta importância aos trajes, como vocês. Aqui o que realmente importa é todo esse sonho maravilhoso que estamos vivendo depois da chegada de vocês. Já não sofremos com doenças, compreendemos e estamos todos os dias aprendendo com os terráqueos, a compreender muito mais dos fatos da vida no Universo.

- Mas quando do primeiro contacto com a Terra, seu povo julgou que fossemos deuses. Ainda pensam assim?

- Vocês certamente foram enviados pelos deuses para nos tirar da ignorância em que vivíamos. Sozinhos, levaríamos milhares dos nossos anos para chegar a um estágio parecido com o da sociedade da Terra. Quando fui levado para lá, ainda pensava que estava indo para o mundo dos deuses mas, a medida em que, no seu planeta, fui aprendendo e observando e percebi que vocês, a despeito do seu enorme conhecimento da realidade, também não tinham uma explicação para as questões fundamentais da vida, como o nascimento e a morte, entendi que não eram mesmo deuses, mas seres viventes como nós, apenas com muito mais tempo de vida e que, nesse tempo, tinham adquirido conhecimentos e técnicas que nós nem sequer sonhávamos possíveis.

- A expectativa de vida dos cornianos subiu muitíssimo e a mortalidade infantil diminuiu. Os computadores calculam que, se for mantida a Lei dos Cem Anos, que proíbe a miscigenação, os cornianos lotarão esse continente onde estão hoje as Aldeias da Área Neutra. O senhor acredita que, em contato com os valores terráqueos e diante do boom de crescimento populacional, a sua sociedade manterá essa pureza de sentimentos em relação ao bem comum e aos demais cidadãos? Em apenas mais dois anos será introduzida nessa sociedade a moeda. Isso não modificará os sentimentos comunitários dos cornianos? Haverão diferenças sociais e de posição e até de acesso à tecnologia? Isso não destruirá essa generosidade e esse sentido comunitário de seu povo?

- Eu sinceramente não sei. Teremos que pagar para ver. Mas acredito que toda competição e a briga pelo poder que existe na Terra tenha se desenvolvido como conseqüência da imensa luta que vocês travaram ao longo de sua evolução. Nós, cornianos, ganhamos a tecnologia e o conhecimento sem ter que sofrer para conquistá-los. Mesmo submetidos às regras do dinheiro talvez, por isso, possamos nos manter mais solidários que os terráqueos.

- Mas a introdução da moeda e da hierarquia social não despertará nas futuras gerações o sentimento de posse?

- Não sei – respondeu Tutôr, com uma expressão de certa preocupação no rosto. - Mas acredito que mesmo que aconteça não será uma coisa tão violenta como é entre os terráqueos.

- Os cornianos nunca são violentos?

- Nos jogos de guerra e nas nossas competições há algo parecido com a violência de vocês, mas não existe o sentimento de ódio ou revolta que leva os terráqueos à violência.

- O senhor vê, portanto, o futuro com otimismo?

- Existe outra maneira de ver?

- Há quem diga, e não são poucos, na Terra, que a introdução da moeda vai tornar os cornianos tão competitivos quanto os terráqueos.

- Isso só o tempo nos mostrará.

- Outra crítica feita na Terra, como deve ser de seu conhecimento, é à Lei dos Cem Anos, que muitos consideram uma mera utopia. Como será possível impedir, por uma centena de anos, que os cornianos procriem com terráqueos?

- Também não acredito que seja possível. Devemos evitar que o nosso DNA se dilua e, por isso, essa lei. Mas evidentemente acontecerão casos em que as pessoas desejem ter um filho, como fruto do amor, e elas acabarão fazendo isso, mesmo contrariando a Lei.

- Como é de amplo conhecimento público, o senhor está vivendo um caso de amor com a Almirante Réa. Desejaria ter um filho com ela?

- A Almirante nunca teve interesse em ser mãe. Ela não teve filhos, por opção, com o seu companheiro, Major Narciso. Não vejo porque gostaria de ter um filho comigo.

- O senhor tem filhos com sua companheira. Como ela e a sua família encaram esse caso de amor com a Almirante?

- Com alegria. Todos sabem que eu sou mais feliz realizando o meu amor pela Almirante.

- Mas não existe ciúme? Não existem reclamações pelo tempo que o senhor dedica à Almirante e fica afastado de sua família?

- Por que existiria? Amo a minha companheira, amo meus filhos e amo também a Almirante.

- É verdade que existe sexo grupal entre vocês?

- Os cornianos consideram o sexo, e aqui até concordam com os terráqueos, uma questão individual. Cada qual é livre para fazer o que quiser, desde que todas as partes estejam de acordo.

- Na Terra muitos consideram que o que a Almirante tem celebrado em suas declarações com relação ao amor livre dos cornianos é apenas mais uma atitude primitiva e denota ausência de moral.

- Nós realmente não temos códigos de conduta amorosa ou sexual. Quando alguém ama alguém basta que seja correspondido e o problema é exclusivamente dos amantes, não diz respeito à sociedade. É, como dizem vocês, uma questão privada. Mas ninguém é obrigado a fazer amor contra a sua vontade, isso é impensável para o povo corniano.

- E o companheiro da Almirante? Ele é terráqueo. Como reagiu ao caso de amor de vocês?

- Nunca tive oportunidade de perguntar a ele. O major passa muito pouco tempo em Cornos, pois tem suas ocupações profissionais e sempre que ele está aqui, como é natural, a Almirante dedica seu tempo livre a ele.

- O senhor acredita que esse conceito de amor livre de Cornos pode influenciar os terráqueos, como quer fazer parecer, em suas declarações, a Almirante Réa?

- Os terráqueos que vivem aqui conosco não parecem dar importância a essa questão.

- Já aconteceram outros casos de amor entre cornianos e terráqueos?

- Pode ter havido, mas ninguém reparou e eu não sei responder a essa pergunta.

- Outra coisa que surpreendeu os terráqueos foi a ausência de diferenças, na sociedade, entre homens e mulheres. Como o senhor deve saber a terra considerou, por milênios, as fêmeas como sendo inferiores aos machos e só nos últimos 150 anos as mulheres do nosso planeta começaram a conquistar posições de igualdade social com os homens.

- Nós, em Cornos, sempre achamos as mulheres privilegiadas porque a elas era dado gerar as nossas crianças. Mas nem por isso as colocamos em posição de superioridade. Sempre nos achamos iguais, somos todos seres viventes.

- Mas e a paternidade?

- Só com o conhecimento que adquirimos com os terráqueos é que compreendemos que as crianças não são apenas dons dos deuses e que nós, homens, temos um papel importante na concepção. Antes os nossos filhos eram daqueles, homens e mulheres, que viviam com eles na mesma casa e que os criavam. Hoje sabemos que uma mulher pode até descobrir quem é o seu parceiro na geração daquele filho determinado. Mas continuamos não dando muito importância a isso. Todas as crianças são bem-vindas entre os cornianos. E todos, de uma maneira ou de outra, contribuem para que elas se tornem adultos fortes e sadios.

 

Todos os cidadãos cornianos ouvidos pela reportagem, pareciam estar de acordo com as posições de seu chefe e suas breves declarações em nada contradiziam a fala de Tutôr. Todos pareciam também satisfeitos com a radical mudança que estava acontecendo em suas vidas. Muitos se mostraram orgulhosos com suas novas atribuições profissionais e com os ofícios que estavam aprendendo. Arvos também foi ouvido:

- O senhor, como o maior sacerdote das tribos, não ficou sem função devido aos novos conhecimentos adquiridos por seus povos e que desmente quase a totalidade de suas crenças anteriores? – perguntou o repórter.

- Quem ficou sem função, meu jovem – respondeu Arvos com tranqüilidade – foram as nossas antigas crenças. Ao sacerdote prossegue a função de cuidar da espiritualidade de seu povo e guiá-lo no sentido de promover o encontro com os desígnios de Deus.

- De um único Deus?

- Nosso povo ainda crê que sejam muitos deuses mas eu, que vivi três anos na terra e até hoje sou um estudioso das religiões de seu planeta, estou chegando à conclusão de que todos os deuses são um único e que a sua essência está acima da compreensão de nós, seres viventes, assim como acima da nossa compreensão estão os fenômenos do nascimento e da morte. Mesmo o seu povo, com toda a sua sabedoria e conhecimento, depois de milênios de cultura, ainda não chegou a nenhuma conclusão sobre o mistério de estar vivo.

- O senhor diria que o conhecimento proporcionado pelos terráqueos afastou os cornianos da religião?

- Sim. Da religião, como a compreendíamos, evidentemente. E também um pouco da espiritualidade, porque há ainda muito deslumbramento e muito a aprender com vocês. Mas as coisas do espírito estão presentes em todos nós e, aos poucos, o povo retorna à busca de Deus e eu tenho recebido mais gente do que recebia antes, em minha casa, gente cheia de novas indagações que procuramos responder juntos.

- Surgirá então uma nova religião em Cornos?

- Já está surgindo, graças a Deus.

- Como se processa a influência das religiões da terra nessa nova religião que o senhor diz estar surgindo entre seu povo?

- Tenho dividido com nossos irmãos os conhecimentos que venho adquirindo todos esses anos através dos meus incessantes estudos de vossas crenças. A Bíblia dos cristãos ainda nos é bastante incompreensível. As teorias islâmicas não encontraram nenhuma aceitação entre os nossos, bem como os conceitos budistas e indianistas. No que concerne à imagem de Deus, nos identificamos melhor com os evangélicos. Muitos de nós acreditam que Deus possa ter mandado um filho seu, o Cristo, à Terra, assim como acreditam que foi Deus quem fez com que os terráqueos trouxessem a nós a grande benção do conhecimento e toda a melhoria inegável de nossas vidas. Já naquilo que diz respeito ao que Deus espera de nós, também estamos mais de acordo com o que dizem as muitas religiões evangélicas. Para os cornianos é inconcebível um Deus que pregue a privação e o sofrimento, como no catolicismo. Acreditamos mais num Pai Celeste que quer bem aos seus filhos e que quer vê-los viver em harmonia com a natureza, com liberdade, felicidade e prosperidade.

- O senhor diria, então, que os cornianos se tornarão cristãos?

- Talvez. Embora muito do que diz o Novo Testamento seja para nós ainda de difícil compreensão. Nas escolas terráqueas também temos representantes de todas as religiões da Terra mas, como eu já disse, a tendência da maioria do nosso povo é de uma maior identificação com os evangélicos.

 

 

Iala também teve o seu espaço no documentário e, mais do que suas declarações, a Terra comentou suas maneiras elegantes que, em nada, lembravam aquela mulher nua e enfeitada que aparecera na mídia da terra, pela primeira vez, há cinco anos. Iala hoje era uma perfeita terráquea, de cabelos bem cortados, maquiagem e trajes clássicos, usando sempre uma flor de seda na lapela de seus bem cortados blazers.

- A senhora resolveu, então, tornar-se médica?

- Sei que terei longos anos de estudo pela frente, mas tenho me esforçado. Quero saber tudo o que os humanos sabem sobre o funcionamento dos corpos dos seres viventes e sobre a cura das enfermidades. Antes da chegada dos terráqueos eu só tinha algumas ervas, pouco eficientes. Hoje temos um verdadeiro arsenal de drogas para devolver a saúde aos que sejam vítimas de qualquer doença. É maravilhoso!

- Muitas das infusões usadas anteriormente pela primitiva medicina corniana foram consideradas nocivas à saúde pelos técnicos terráqueos, inclusive o hábito de fumar.

- Sim. Os cornianos sempre fumaram usando instrumentos que chamamos Cornos (daí, o nome do nosso planeta) e que fabricamos com chifres de animais. Lá dentro colocamos uma mistura de ervas que nos faz mais alegres. Mas fumar, para nós, é uma atividade coletiva, o fazemos em grupo e os cornos circulam de mão em mão. Não é uma atitude individual como acontece com os cigarros, charutos e cachimbos dos terráqueos. Aprendi que, até muito pouco tempo atrás, esses instrumentos de fumo dos terráqueos continham drogas também muito prejudiciais à saúde deles e que foram lentamente sendo substituídas por outras menos nocivas. Mas os cornianos ainda fumam as antigas ervas. É um hábito arraigado que esperamos que não seja mais transmitido às nossas crianças.

- E vocês usam agora o fumo e as drogas da Terra?

- Para nos alegrar ainda temos preferido o nosso fumo nos cornos. Mas podemos beber vinhos, cervejas e uísques, que são fornecidos nos bares que os terráqueos instalaram e sempre com quantidades limitadas. Não nos é permitido consumir bebidas alcoólicas em casa. Alguns terráqueos chegaram a plantar uma erva parecida com o nosso fumo, que vocês chamam de maconha ou marijuana, mas foram proibidos pela Frota Espacial, que destruiu as plantações. Eu mesma experimentei, mas ainda prefiro o nosso fumo.

- Mas a senhora está consciente dos malefícios desse hábito?

- Estou e tenho evitado participar das reuniões onde se consome o fumo nos cornos. Mas às vezes participo. Como eu já disse, é um hábito arraigado entre nós e realmente só nos traz alegria e, repito, uma alegria coletiva.

- Está sendo realizado algum estudo sobre os efeitos do fumo nos cornos?

- Sim. Os terráqueos estão pesquisando o princípio ativo das substâncias e logo terão resultados conclusivos.

 

Além das entrevistas, depoimentos e imagens da vida nas aldeias, o documentário trazia ainda inúmeras paisagens naturais do planeta, com seus rios de água límpida, seus oceanos majestosos, suas florestas intocadas.

E prometia uma próxima edição sobre a vida dos terráqueos nas colônias extrativas fora do continente onde ficava a Área Neutra.

Pela absoluta ausência de problemas graves, os editores resolveram chamar o programa de O Paraíso Refeito e prometiam grandes revelações, no próximo documentário, sobre o resto do planeta.

 

17. Comunhão

 

Arvos assistiu, como bilhões de pessoas o fizeram, o documentário sobre a Área Neutra e ficou relativamente satisfeito. Ao menos, nesse programa de TV, os cornianos não estavam sendo tratados como seres imbecis. No entanto, suas próprias declarações à reportagem o surpreenderam. Como ele não havia citado a música? A música dos terráqueos era realmente um dom divino e era imperdoável que ele nem sequer tivesse mencionado a importância dessa descoberta para si próprio e para muitos de seus irmãos.

Freqüentemente se dirigiam aos bosques ao redor da aldeia e celebravam seus cultos a Deus, ou aos deuses, agora sempre com a presença das máquinas musicais da Terra. Houvera mesmo uma ocasião em que haviam levado para uma grande clareira um conjunto de câmara, de músicos amadores que faziam parte do time de preceptores terráqueos. Arvos gostava das máquinas mas tinha que admitir que a música produzida pelos instrumentos era de qualidade insuperável.

Aborrecido, saiu para caminhar, levando num dos bolsos o sua maquininha portátil de som e os fones de ouvidos e, no outro, sua biblioteca de assuntos religiosos. Ele muito se surpreendera ao perceber que um objeto tão pequeno pudesse conter tantas e tantas palavras. Explicaram-lhe, na ocasião em que ganhou essa biblioteca, que lá estavam, nas memórias eletrônicas, todas os mais importantes livros sagrados da Terra. Bastava pressionar o dedo sobre a pequena máquina e apareciam os índices das obras na pequena tela. Depois era só escolher dizendo em voz alta o que se queria acessar.

Seus passos o levaram para a grande clareira, onde tantas vezes fora, sozinho ou com seus irmãos, para rezar. Parecia-lhe que lá, naquele lugar, Deus prestava mais atenção às suas preces.

Enquanto caminhava pelo bosque, sentia cada vez mais presente a sensação do sagrado. Sim, para ele, Deus estava, sem dúvida, na natureza. Caminhara também algumas vezes pelas matas da Terra, naquele ano em que passara entre os terráqueos. Haviam lhe explicado que muitas florestas haviam sido destruídas em nome do progresso (uma coisa que lhe pareceu inconcebível) e que algumas haviam sido reconstruídas, como a Floresta Negra, num lugar chamado Alemanha e a Mata Atlântica, no Brasil. Mas foi apenas na Reserva Mundial Amazônica que ele pudera sentir aquela presença, que ele chamara um dia de Espírito da Natureza, como sentia nas matas de seu planeta natal.

Quanto mais se afastava da aldeia, maior era a sensação daquela serena presença dentro dele. Como se Deus não pudesse estar tão presente entre as atividades humanas. Ali, todos os sons, os pássaros, os bichos que a floresta escondia, o murmúrio das águas próximas, o vento nas folhas e a contemplação das maravilhosas cores e nuances da natureza, com a luz a brincar entre as árvores no seu eterno jogo de claro-escuro, tudo elevava sua alma, como o elevava também a contemplação do céu, de dia com seus vários tons e dança de nuvens, de noite, pelo cintilar das estrelas... Arvos, ao tomar contacto com a música da Terra, freqüentemente era transportado à lembrança das matas. E fora assim que concluíra que a música que os terráqueos haviam criado, a mais nobre e elaborada delas, a que eles chamavam clássica, era a síntese e a ordenação lógica dos ruídos naturais, sendo, portanto, a verdadeira voz de Deus. Ainda que os terráqueos não lhe tivessem dado nada daquele mundo de conhecimento e maravilhas, ele lhes seria eternamente grato por terem lhe dado a música.

Pensando nisso tudo, chegou à clareira. Sentou-se confortavelmente sob uma grande e frondosa árvore, sentindo nas costas a leve e refrescante umidade de seu poderoso tronco. Colocou o fone nos ouvidos e ligou sua máquina de música. Mas logo percebeu que seria melhor ouvir a melodia no ambiente para não perder também a sinfonia da natureza e mudou de modo, deixando que a maquininha lançasse seus poderosos acordes pelo ar. Fechou os olhos e pediu a Deus que o iluminasse em seus estudos das religiões da terra para que pudesse guiar o seu povo pelos mais seguros caminhos da espiritualidade. Escolhera um disco que trazia uma seleção de trechos de óperas e sinfonias, do qual ele particularmente gostava muito. Tirou do bolso sua biblioteca religiosa e escolheu, quase por acaso, um capítulo da Bíblia: Eclesiastes. E leu:

“ Geração vai e geração vem; mas a terra permanece a mesma para sempre.

Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo.

O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte, volve-se, revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos.

Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.

Todas as cousas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.

O que foi é o que há de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, de novo debaixo do sol.” (Eclesiastes, 1 – 4 a 9)

E Arvos subitamente compreendeu que, por mais diversos que pudessem ser os caminhos dos seres viventes, em direção ao Sagrado, todos esses caminhos eram um único e conduziam a um único Deus, uma força inexplicável (mesmo para os terráqueos que tudo pareciam saber), a mesma força que fazia brotar as sementes e nascer todos os seres viventes, homens, animais ou árvores e que a verdadeira religião seria aquela que levaria todos a um encontro inexplicável, um encontro que se processava no íntimo de cada ser, um encontro que não poderia ser descrito, explicado, dissecado.

Nada havia de novo, sob qualquer sol, entendeu ele. Por mais coisas novas que lhe tivessem trazido os terráqueos, por mais que houvesse transformações em seu povo, pela moeda, pela competição social, tudo isso era nada diante do grande mistério da vida que se impunha, que se repetia.

A vida, magnífica, haveria de se interpor sempre entre as banalidades do cotidiano e o grande mistério da morte.

Levantou os olhos e viu, maravilhado, que tinha companhia. Na clareira estavam muitos animais, alguns ferozes, placidamente recostados nas árvores, como que a compartilhar da música que brotava de sua máquina de som. E borboletas. E pássaros.

Arvos levantou-se e caminhou entre eles, certo de que saberia, sim, conduzir o seu povo, pelos mais belos rumos da espiritualidade que, a despeito de todas as maravilhas que a Terra havia introduzido em sua sociedade, era a meta final para todos os seres viventes.

 

18. Traições

 

A segunda reportagem da TV Vitória, sobre os continentes colonizados e explorados pelos terráqueos em Cornos não foi tão sensacional quanto a primeira, sobre os próprios cornianos. Mas, nesta, a Almirante Réa recebeu uma atenção maior, por suas declarações sobre as regras importas para a extração de matérias primas e sobre os altos impostos que o resto do planeta pagava à Área Neutra. Muitos na terra, liderados pelo General Apolo, tinham sérias dúvidas sobre essas cifras, que consideravam absurdamente altas e Réa era acusada de estar favorecendo descaradamente a Área que governava, principalmente, diziam, depois de seu envolvimento com o chefe Tutôr.

O documentário, esse de apenas uma hora e meia de duração, mostrava a riqueza também dos colonos, muitíssimo bem instalados em agrupamentos humanos com todo o conforto e condições técnicas para realizar suas atividades extrativas ou de plantio. Em apenas dois anos e meio a Terra tinha conseguido transformar o solo de Cornos e já possuía até organizações ecológicas não-governamentais que tinham se instalado no planeta para medir as conseqüências, para o eco-sistema, de toda aquela súbita mudança. A cada dia novos grupos de humanos se instalavam lá, em busca de uma rápida prosperidade. E isso realmente estava ocorrendo.

A rede de Tv concorrente, a TV Mulher, resolveu, diante do sucesso de sua oponente, fazer também uma grande e sinistra reportagem com os ecologistas instalados em Cornos, prevendo trágicas modificações no clima e em todo o sistema do planeta. Mas ninguém prestou muita atenção a isso, o que deixou Marisa Tourinho, que agora é editora da Rede, em fúria.

Réa estava se preparando para deixar o Gabinete quando a Major Mel entrou para repassarem a agenda do dia seguinte. E, entre outras coisas, comentou:

- Marisa, a editora da Rede de TV Mulher, ligou para mim esta tarde. Ela quer uma exclusiva com você para discutir os movimentos de oposição ao seu desempenho que existem no Congresso da Terra.

- Não estou muito a fim de dar prestígio a essa repórter.

- Ela disse que a matéria poderia ajudá-la a enfrentar as críticas e insinuou que você está ficando numa posição mais frágil agora que se vai instalar a moeda na Área Neutra e insinuou que já há rumores sobre uma possível transferência sua, de volta à Terra.

- Essa mulher inventa qualquer coisa para atingir seus objetivos.

- Não acredita, então, nessa possibilidade? – perguntou Mel com uma ruga de preocupação na testa – Acho que você poderia considerar que a oposição talvez seja mais forte do que você imagina.

- O que é que você sabe, Mel, que eu não sei?

- De concreto, nada. Mas se você não fosse tão inflexível, se aceitasse ceder um pouco... Veja, esse povo já tem a melhor qualidade de vida possível, você sabe tão bem quanto eu que está sobrando dinheiro na Área Neutra e os impostos da colonização são mais altos do que qualquer taxa praticada em nosso planeta. Não vai poder ser assim para sempre.

- Acha, então, que estou errada? Pelo que eu saiba, também há muito dinheiro nos continentes que estão sendo colonizados e as bolsas da terra só mostram índices favoráveis aos investimentos feitos em Cornos. Por que deveria eu trair o povo nativo, apenas para agradar aos instintos gananciosos e devoradores dos meus conterrâneos?

- Ora, Almirante, me perdoe a liberdade, mas eu não veria uma pequena redução nas taxas pagas aos nativos como uma traição. Afinal, os benefícios que trouxemos a eles foram imensos. E eles já têm uma qualidade de vida superior a de muitos povos na própria Terra. Sua moeda terá um alto valor, ainda que as taxas caiam um pouco.

- Você não concorda comigo, realmente, Major Mel.

- Permissão para falar francamente.

- Permissão concedida.

- Acho que a Almirante não está sendo diplomática, nem mesmo política. Penso que a paixão que este planeta despertou em seus sentimentos a está impedindo de ver com clareza o delicado equilíbrio que é preciso manter aqui entre nós e a Terra. Penso que deveria negociar com os congressistas e penso ainda que o alto escalão da Frota feria com bons olhos essa negociação.

- Você acredita que o meu caso com Tutôr esteja me cegando?

- Não. O chefe Tutôr pode ser detentor do símbolo de seu amor por esse povo. Durante todo esse tempo em que convivemos com a sinceridade e singeleza dos cornianos todos nós estivemos sendo influenciados por isso e aqui está uma coisa que a Terra, tão distante da nossa realidade, aqui, dificilmente compreenderá. É o momento de ceder, ao menos um pouco, Almirante.

- Ainda falando francamente major, seus conselhos sempre têm sido de utilidade para mim e eu prometo pensar com cuidado no que está me dizendo.

- E quanto à entrevista? Nesse momento também seria de utilidade.

- Depois da minha decisão, voltaremos a falar com essa repórter.

- Está certo, Almirante.

- Dispensada, Major.

- Boa noite, Almirante.

Não foi no entanto uma noite exatamente boa para Réa.

Quando entrou em casa, lá estava o Major Narciso que mudara seus planos e aparecera sem avisar. Réa alegrou-se por vê-lo:

- Meu amor! Que surpresa!

- Ainda sou mesmo o seu amor? – perguntou ele, enquanto a abraçava.

- Claro. Sempre será.

- Você parece preocupada.

- E estou mesmo. Todos parecem acreditar que eu deva aceitar um corte nas taxas que a colonização tem pago à área neutra.

- E você, o que acha?

- Acho que estamos tirando riquezas sem fim desse planeta que, de fato, pertence aos nativos. Eles têm que ser bem pagos por isso. Além disso, não sei porque se importam tanto comigo. Eu não tenho poder para desobedecer a uma decisão do Congresso. Se querem tanto assim reduzir os impostos que o façam! Não precisam da minha anuência.

- Mas também não precisam comprar uma briga com a toda poderosa almirante em comando da colonização.

- Terei eu sentido uma certa ironia em suas palavras?

- Seria tudo mais fácil se você os ouvisse e abrisse um diálogo nesse sentido.

- Até tu, Brutus! – exclamou Réa, afastando-se dele.

- Tenho ouvido muitas coisas sobre isso. A Terra não vai permitir que um bando de nativos acumule tanto dinheiro e, conseqüentemente, tanto poder. É mais fácil entregar a liderança do planeta a alguém mais disposto a dialogar.

- Narciso!

- É verdade, Réa. A imagem que você criou não é exatamente de uma líder terráquea numa colônia, mas de alguém da própria colônia com todo o poder do almirantado da Frota Estelar. Nossos conterrâneos sentem-se traídos. Você parece mais preocupada com a riqueza de mil cornianos do que com a economia da Terra. E, para ser sincero, eu concordo com os seus críticos. Em tudo tem que haver equilíbrio. A Terra deu milênios de conhecimento a eles. Sem nós, continuariam morrendo e cresceriam muito devagar. Se houvesse uma maneira de calcular a renda per capita dos cornianos – e em breve, haverá- ela seria cem vezes, no mínimo, a dos suíços. Você está cometendo o erro de governar para mil pessoas, esquecendo-se de que, aqui, a sua missão é integrar essas mil pessoas ao governo maior que é o da Terra.

- Narciso!

- É verdade, Réa. Eu posso ser apenas major e você a almirante mas eu estou certo e a nossa convivência pessoal me permite lhe dizer isso, como seu amigo

que sou.

- Vou ter que ceder, então?

- Vai ter que dialogar e rever sua posição.

- Vamos jantar. Quero ir dormir cedo, estou cansada e confusa e preciso pensar em tudo isso.

- Não, minha querida, só passei para lhe dar um beijo. Tenho um compromisso no clube dos oficiais, na aldeia.

- Você nunca mais dormiu comigo.

- Réa, nós agora somos amigos. Eu ainda amo você, mas você preferiu Tutôr.

- Por que não posso ter os dois?

- Porque somos terráqueos e não cornianos. Se bem que quanto a você, minha cara, talvez seja mais corniana hoje do que terráquea, não é verdade?

Deu-lhe um beijo e se foi.

Réa ficou sozinha com suas dúvidas. Meteu-se na cama, esquecendo-se do jantar, ligou o computador do quarto, mas nada, nem notícias, nem filmes, nem documentários, pareciam prender-lhe atenção.

Levantou-se e foi à varanda olhar as estrelas. Sentia-se, de repente, solitária e culpada. Deveria discutir com Tutôr, Arvos e Iala, a questão da redução de seus impostos? Como eles reagiriam? Réa acreditava que todo o dinheiro do mundo ainda seria pouco para pagar aos cornianos pela expropriação de todo o planeta que um dia, ainda que milênios depois, seria naturalmente deles e não desse povo invasor. O diabo é que “esse povo invasor” era o seu próprio povo que agora a estava julgando como uma traidora, uma vira-casaca, que se postara ao lado de mil nativos, quando deveria defender os interesses de sua própria gente. Estava traindo a terra, que lhe dera tudo, que fizera dela a maior autoridade naquela colônia? Estava traindo ao seu querido amor, de tantos anos, que preferia hoje um compromisso no clube dos oficiais a uma noite de amor com ela?

Sim, estava errada. Seu dever para com a Terra e para com a Frota era promover um ajuste, um maior equilíbrio naquela dinheirama da Área Neutra. Seu dever para com o seu amor era reconquistá-lo e esquecer essa aventura com o chefe nativo.

Seu coração, porém, parecia dizer o contrário.

As estrelas eram outras no céu de Cornos, mas, de repente, Réa viu o firmamento da Terra e pareceu-lhe estar ouvindo a prece de sua mãe, quase cinqüenta anos antes, quando de seu próprio nascimento: “...te consagro agora, perante as estrelas e a imensidão do Universo, minha filha. Que ela sirva aos Teus propósitos e que seja a vida dela dedicada aos Teus Mistérios.”

Talvez fosse o tempo de voltar para as estrelas – pensou Réa.

Mas seus pés tinham criado raízes e fincado-se àquele solo.


19. Revolta

 

Réa estava decidida a expor aos líderes cornianos a idéia da Terra em adequar os impostos pagos pela exploração do planeta. Achava a situação constrangedora, mas pior seria se o congresso a obrigasse e ela tivesse que expor aos amigos (sim, os três haviam se tornado seus amigos) o fato consumado. No momento em que ia pedir à Major Mel que marcasse uma reunião, a própria assistente entrou em sua sala:

- Almirante, sugiro que sintonize a TV local em seu computador.

A cena mostrava uma reunião na praça principal da aldeia. Algumas pessoas se aglomeravam para ouvir a oratória de um cidadão corniano, vestido, aliás, despido, e adornado como era o costume, antes da chegada dos terráqueos. O discurso dele repudiava os conhecimentos e a influência que a Terra estava exercendo sobre o povo e clamava a todos à renúncia a tudo aquilo que, até agora, Cornos parecia unanimemente acreditar ser uma maravilhosa dádiva recebida.

- Que direito tem os terráqueos invasores – perguntava ele – de impor seu estilo de vida ao nosso povo? Antes de eles chegarem, não éramos um povo feliz e realizado? Não tínhamos o suficiente para o nosso sustento e sobrevivência? Agora nos vestimos como eles, até falamos com a língua deles, usamos as suas máquinas e o seu suposto conforto, mas vejam o que nos tornamos. Uns escravos do trabalho que eles querem nos impor para manter em funcionamento todas essas maquininhas que muitos de vocês reverenciam como revenciariam a própria obra dos deuses! Onde estão os nossos deuses?

Onde está a nossa natural alegria?Nosso povo não canta mais, não mais se reúne em torno dos cornos para fumar as nossas ervas de felicidade, já há discórdia em algumas casas e, em breve, com a instalação dessa tal moeda nós nos tornaremos competitivos e cruéis como eles. A Terra veio aqui para explorar o nosso planeta e, em troca, nos ofereceu o seu modo de vida, que eu aprendi na escola deles, nos filmes deles, nas histórias que nos contaram. Não sei quanto a vocês, mas eu não quero, como nosso chefe Tutôr, que considero um traidor, me tornar igual a eles: cruel, insensível, individualista. Nós somos um povo livre. Nosso amor é livre. Nós somos alegres e não conhecemos esse estado de espírito irritado que vemos neles. Sei que muitos de vocês dão risada dessa maneira estúpida que certos terráqueos têm às vezes e que riem também dos bobos e violentos sentimentos que eles manifestam nas histórias contadas nos filmes e até nos noticiários. Mas nós somos adultos. O que será de nossos filhos crescendo num mundo igual ao deles?

Um voz se ergueu na pequena multidão que se formara em torno do orador:

- Isso é uma ingratidão! A Terra nos deu tudo, conhecimento, saúde, música, entretenimento. Antes deles morríamos por qualquer doencinha. Nossos filhos não teriam as imensas possibilidades de saúde e bem estar que podemos dar a eles hoje! Nós demos um salto evolutivo! O que você propõe? Que voltemos a ser aqueles selvagens que éramos?

- Sim, meu amigo, eu proponho que voltemos a ser nós mesmos, que recuperemos a nossa identidade cultural antes que seja tarde!

- Ora – retrucou o espectador – você nem sabia que tinha uma identidade cultural antes da chegada dos terráqueos! Vá você sozinho para o mato e volte a viver como um selvagem. Nem sei como eles permitem que você fique falando asneiras em praça pública! Quanto a mim, amo os terráqueos e concordo com o nosso Mestre Arvos que sempre diz que, para a Terra, seria muito mais fácil ter nos exterminado e tomado o nosso planeta inteiro.

E o bate boca continuou. Mas Réa julgava que já ouvira o suficiente. Deixou a tela sintonizada, abaixou um pouco o som, para que pudesse continuar a ouvir e chamou a Major Mel. Agora precisava era de informações:

- Quem é esse sujeito, Major?

- Pautros. Um cidadão comum. Cursou a escola com os outros e, logo que começou a ser treinado para o trabalho, deu mostras de revolta, chamando a atenção dos seus preceptores, até porque revolta não é uma característica da personalidade corniana. Temos o dossiê dele nos arquivos.

- Essa é a primeira vez que ele tenta induzir publicamente os outros com suas idéias?

- Sim. Até agora ele tem manifestado sua insatisfação em círculos restritos.

- Tem conquistado adeptos?

- Sim. Cerca de 30 pessoas concordam com ele e pretendem fundar uma aldeia o mais longe daqui que conseguirem.

- Por que não fui informada antes?

- O relatório da psicologia julgava que a situação estava sob controle e que, brevemente, Pautros seria integrado sem maiores problemas. Não achamos que fosse relevante o suficiente para incomodar a Almirante. Parece que estávamos enganados.

- Os cidadãos de Cornos são, por constituição, livres para não aceitar o modo de vida terráqueo. Se esse Pautros e o seu grupo querem ter o direito de viver como antigamente, creio que posso delimitar um território para que eles lá se instalem. Vou estudar isso e quero conversar pessoalmente com ele.

- Mas, Almirante...

- Algum problema, Major?

- Não, não senhora. Nenhum. Para quando quer o encontro?

Para daqui a dois dias, depois que eu tiver me reunido com os líderes cornianos sobre a questão dos impostos e depois que estiver segura de que escolhi uma área geograficamente adequada para instalar o pessoal de Pautros.

- Sua reunião com a liderança está confirmada para amanhã pela manhã. Acabei de marcar e ia mesmo informá-la.

- Perfeitamente, Major. Dispensada.

 

 

Quando Reá acabou de expor a situação dos impostos para os três líderes cornianos, foi Arvos e não Tutôr, como de costume, o primeiro a falar:

- Almirante, pelo o que eu sei e, por favor, me corrija se estiver errado, a Terra pagará impostos ao nosso povo pelo prazo de 100 anos. Depois disso, acredita-se que os cornianos estarão completamente integrados ao sistema produtivo terráqueo e que poderemos, então, andar com as nossas próprias pernas. Cem anos é um tempo enorme e realmente temos mais do que precisamos. Não vejo porque a Terra não poderia rever as quantias que nos paga e acredito mesmo que, em cem anos, isso voltará a acontecer muitas vezes. A Almirante mesmo está dizendo que há muito, muito dinheiro na Área Neutra. Para que precisamos de muito dinheiro? Nós já temos o suficiente e espero apenas que tenhamos sempre o bastante para continuar a viver essa nova vida e progredir, como povo, dentro dela.

- Quanto a mim – disse Iala – não vejo lógica em pensar que a Terra nos salvaria de nosso estado selvagem para, depois, nos colocar em dificuldades. Acho que o que vocês decidirem estará bem decidido.

Três pares de olhos fixaram-se, então, em Tutôr. Mas o chefe parecia alheio a tudo. Ao notar os olhares, foi como se despertasse:

- Acho que a Terra calculou mal o que nos devia. E já nos deu demais. Por mim, concordo com os meus companheiros.

- Mas alguma coisa o está preocupando – disse Réa.

- Pautros me chamou de traidor. Até agora não entendo. Tudo o que fizemos foi pelo bem de todos. O próprio Pautros não poderia articular tão bem os seus pensamentos se não tivesse estudado, como todos nós, com os terráqueos e, com eles, aprendido a pensar.

- Mas nós concordamos, Tutôr, que os cornianos que não quisessem adotar o sistema de vida da Terra seriam livres para viver como quisessem.

- O que eu não entendo é como alguém pode preferir viver na ignorância de tantas maravilhas, exposto às doenças e às intempéries.

- Eles se afastarão mas, em caso de necessidade, continuarão tendo direito à nossa completa assistência. É um direito, Tutôr – explicou Réa.

- Nunca pensei que haveria discórdia entre o meu povo. – respondeu ele.

- Pior seria se todos concordássemos em tudo – disse com calma o Mestre Arvos – Agora mesmos estamos tentando alinhar nossos pensamentos com relação aos deuses e ao sagrado, estudando inclusive as crenças terráqueas e revendo o que sobrou das nossas, na tentativa de encontrar um novo caminho para uma religião corniana. E temos discordado o tempo todo. Mas é da discórdia que nascem novas opções, novos caminhos, conciliatórios. De duas opiniões discordantes, Tutôr, nasce sempre uma terceira e talvez seja esta a mais adequada.

- Mestre Arvos há de me perdoar – respondeu Tutôr – mas o caso aqui é muito diferente. Não se trata de nenhuma busca. Pautros está negando o que ele próprio já se tornou e influenciando outros na volta a uma vida que eu, particularmente, já não gosto nem de lembrar. Não sei que espécie de vida ele pretende dar aos seus filhos e aos seus seguidores. Como será possível viver ignorando os progressos que a Terra nos mostrou? E que direito tem ele de negar aos seus descendentes uma vida de maravilhas?

- Seus descendentes certamente saberão que, fora da aldeia que ele fundar, se vive de outra forma. Isso será praticamente impossível de esconder. E eles poderão optar. – ponderou Arvos.

- Mas com que idade? Quando atingirem o momento dessa opção, essas crianças já estarão atrasadas em relação às nossas. Elas serão selvagens e terão muitos problemas para se adaptar em nosso meio.

- Tutôr – tentou apaziguar Réa – você está colocando o carro na frente de bois. Deixe Pautros e sua gente viverem como optaram por viver. Quando um deles adoecer seriamente virá correndo procurar ajuda para salvar a pele. Acabará se estabelecendo naturalmente um vínculo entre eles e a Área Neutra. Ninguém pode se isolar completamente. Haverá trânsito entre as aldeias deles e as nossas cidades. Tudo tem seu tempo. Você está magoado porque alguém ousou discordar daquilo que você considera ideal para o seu povo. Isso vai acontecer outras vezes na medida em que o seu próprio povo vai crescer muito mais depressa, agora que a mortalidade infantil foi eliminada. São novas realidades e você sabia que o nosso estilo de vida terráqueo traria fatos inesperados, inéditos.

- Sim, Almirante. Como sempre você está certa. Sou eu quem precisa se acostumar ao que vocês na Terra chamam de oposição e que, aqui, não havia antes. Agora certamente haverá.

- Deixe as coisas acontecerem, Tutôr – disse Iala. – Essas pessoas, como disse a Almirante, têm o direito de optar por um estilo de vida diferente do que temos agora.

 

Assim, graças à cordialidade daquele povo, que tudo parecia aceitar e compreender, Réa pôde negociar com a Terra a tão falada redução de taxas e todos os veículos de comunicação a festejaram como uma sábia estadista. A vida do povo de Cornos não piorou em nada, ao contrário, nas aldeias rapidamente se instalavam as atividades produtivas dirigidas e executadas por nativos e esses se saíam muito bem em suas novas funções.

Acostumaram-se, também, rapidamente, ao dinheiro e às suas imposições. Os cinco anos seguintes foram de prosperidade tanto para a Área Neutra como para as colônias de exploração, que só faziam crescer. Rapidamente o planeta se urbanizou, com uma enorme vantagem sobre a Terra: ainda tinha áreas e áreas verdes e inexploradas. Cada vez mais terráqueos expressavam o desejo de trocar seu planeta natal por aquele que era julgado como uma segunda edição do paraíso. A população terráquea de Cornos, nestes cinco anos, saltara para mais de vinte milhões de habitantes e os nativos pouco peso tinham, numericamente muito inferiores. Réa permaneceu em seu posto e Mel, promovida a General, voltou para a Terra. O Major Narciso continuou em suas missões exploratórias e vinha cada vez menos freqüentemente a Cornos, o que entristecia um pouco a Almirante, porém logo ela podia lembrar-se da vida como ele com uma coisa boa, mas passada. Seu companheiro era de fato Tutôr, que continuava estudando e evoluindo e era agora o governador de toda a Área Neutra.

Entre as muitas atividades produtivas que se instalaram na Área Neutra, uma das mais rentáveis era o turismo, que fora autorizado pelo alto comando da frota no último ano. Para sair do continente onde estava a Área Neutra, os nativos tinham que sofrer esterilização temporária para assegurar o cumprimento da Lei dos Cem Anos. E eles adoravam viajar! Para um povo que primeiro pensara que a vida estava restrita aos limites de suas aldeias e que, depois, conhecera apenas através de imagens dos computadores, a Terra e o seu próprio planeta, poder deslocar-se era como um sonho que se tornasse realidade. Passados os primeiros meses de euforia, com viagens para os muitos países da Terra e para outros continentes de Cornos, a diretora da maior agência de Turismo (sim, porque já haviam três ou quatro na Área Neutra) teve uma idéia: por que não levar os cornianos visitar os seus próprios dissidentes? Pautros e o seu grupo haviam se instalado a pouco mais de 300 kms da Aldeia de Tutôr, numa área cuidadosamente escolhida por Réa. Estavam lá há cinco anos e tinham retomado o velho estilo de vida dos cornianos. Quase ninguém se lembrava deles, eram “os selvagens”, os esquecidos dissidentes. Télia, a corniana diretora da agência, viu uma possibilidade de oferecer turismo barato e interessante. Logo lançou uma campanha publicitária baseada no mote: “Visite o seu Passado” e, em poucas semanas, a aldeia primitiva, onde viviam dez famílias e cerca de quarenta pessoas, se viu cercada por turistas, carregados de máquinas de imagens, registrando o estilo de vida de seu próprio passado, como se fosse algo inédito.

Foi assim que a Almirante Réa deparou-se, ao chegar ao gabinete, com sua nova assistente, Sue, trazendo-lhe dois graves problemas:

- Almirante – disse Sue – está aqui, esperando por você, o chefe Pautros, incrivelmente bravo, reivindicando o direito de viver em paz, sem a invasão de turistas no fim de semana. E não é só isso: na outra sala, está Melina, uma corniana que trabalha no processamento de dados e acaba de voltar de uma das colônias e chora sem parar dizendo que tem o direito de conversar com você sobre a Lei dos Cem Anos. Ela se diz apaixonada por um engenheiro terráqueo e reivindica o direito de ter filhos com ele.

- Nada mal para começar um dia de sol, não? – riu Réa. – Mande Pautros conversar com Tutôr. Essa é uma questão que eles tem que decidir entre eles que são cornianos. Eu sabia que essa história de fazer dos dissidentes uma atração turística ia dar confusão. Mas não posso proibir os cornianos de visitarem a aldeia de Pautros. Quanto à Lei dos Cem Anos, até que demorou muito para acontecer um caso de amor entre cornianos e terráqueos com desejo de reprodução. Vou receber a moça. Ela está muito nervosa? Procure acalmá-la primeiro, me dê um tempo e me mande um café.

Réa estava preparada para essa eventualidade. Aliás, achava que demorara muito para acontecer. Na Área Neutra poucos casais, com relação estável, se formaram entre terráqueos e cornianos, embora tivessem acontecido vários casos de amor, mas sem maior interesse reprodutivo até porque os cornianos não se sentiam “donos” de sua prole, crianças eram para eles da sociedade e não fruto do amor entre duas pessoas. Além disso, os terráqueos que atuavam na Área Neutra haviam sido exaustivamente treinados e escolhidos a dedo para evitar justamente esse tipo de questão. A Lei dos Cem Anos era inquestionável para os preceptores. No entanto, com a abertura do turismo, Réa já calculara que, mais cedo ou mais tarde, se depararia com esse tipo de problema.

- Então você é Milena, do processamento de dados? Por que solicitou uma audiência comigo? Não sabe que não tenho poder suficiente para, como você, desobedecer as leis? – começou Réa com cara de brava, quando a moça entrou em seu gabinete.

- Sei que a Almirante é ocupada mas o que tenho a dizer é também muito importante não só para mim, mas para todo o meu povo.

Eu quero ter um filho com um terráqueo.

- Milena, quando nós viemos para cá concordamos e seu povo assinou esse acordo com uma série de procedimentos...

- Eu sei, Almirante. Chamou-se Constituição Corniana e juramos cumpri-la.

- Então você sabe que um dos pontos fundamentais dessa Constituição consiste na Lei dos Cem Anos. Ela existe para preservar o seu povo como raça. Todos concordaram em abster-se da miscigenação por 100 anos para justamente impedir que sua raça desaparecesse, dada a esmagadora maioria de terráqueos que existem.

- Mas, Almirante, em cem anos, se continuarmos nesse ritmo, não seremos mais que um ou dois milhões de cornianos. E, em nosso planeta, já existem 20 vezes mais terráqueos do que isso. Penso que quem propôs essa lei seja muito idiota. Apenas postergou uma questão que acabará ocorrendo.

- Essa lei foi proposta por mim.

- Desculpe-me, Almirante. Não a julgava capaz disso. Afinal, que diferença fará se nos misturarmos hoje ou daqui a cem anos? Seremos sempre muito inferiores numericamente.

- Não é esse o nosso cálculo. Pensamos que em um século existirão cornianos suficientes para garantir a preservação de seu DNA original. Além disso, Melina, não vou ficar aqui discutindo com você uma decisão que foi tomada em convenção com as maiores inteligências da Terra. Só aceitei recebê-la porque a major Sue disse que você estava muito agitada e eu pensei que pudesse tranqüilizá-la. Você ainda é muito jovem e os amores da juventude nem sempre duram. Tudo isso vai passar. Também fiquei curiosa em saber porque uma corniana daria importância à paternidade. Para o seu povo, os filhos são de todos e muitas mulheres nem mesmo se importam em saber qual dos seus parceiros foi responsável por sua gravidez, embora todas saibam que isso é hoje perfeitamente possível.

- Isso era antes de sabermos que os homens é que fazem nossos filhos e não os deuses. Eu estou amando um terráqueo que conheci numa viagem a outro continente. Quero viver com ele e quero ter filhos com ele. Foi ele quem me fez ver a importância disso. Filhos como resultado do amor são muito mais importantes do que filhos nascidos por acaso, por obra de deuses que nem conhecemos. Ele me disse que esse é um direito nosso. E estou disposta a lutar por esse direito. Por isso vim até aqui e vou à imprensa, vou botar a boca no mundo, vou lutar pelo direito de ter filhos com o homem que eu amo!

- Estamos em Cornos há sete anos e nenhuma outra mulher questionou a Lei dos Cem Anos. Você pode lutar, Melina, mas não creio que obtenha sequer o apoio de seu próprio povo. Você sabe melhor do que eu que as crianças cornianas são do grupo onde nascem e que entre esses grupos não existe o amor exclusivista. Ninguém vai dar ouvidos a você. Pelo contrário. Dirão que levou a sério demais a influência terráquea, que é mais terráquea que corniana e que quer ver as características raciais de seu povo diluídas na miscigenação conosco. Acho que você deve pensar melhor sobre tudo isso. Você pode ter muitos filhos e muitos amores, está dando tanta importância a esse seu amor pelo terráqueo – como é o nome dele?

- Alan Smith.

- Como eu dizia, está dando muita importância ao seu amor por esse terráqueo porque é uma coisa nova em sua vida. Você gostaria de amar apenas ao seu Alan? E se surgir outro amor no seu caminho? Ele é da Terra. Homens da Terra não aceitam dividir a sua mulher com outros homens, ainda mais se tiverem filhos com ela. Prometa-me que, antes de iniciar a sua luta, vai dar tempo ao tempo. Pense melhor, converse com o seu povo, com seus preceptores, espere o seu coração esfriar e, dentro de três meses, se você ainda quiser isso, prometo que pensarei em levar a sua reivindicação ao Conselho.

- Três meses?

- Sim. Prometa. Se em três meses você não tiver mudado de idéia eu levo o caso ao Conselho e veremos o que podemos fazer. Você poderá se mudar a Terra com esse Alan Smith e ter seus filhos lá. Mas vai ter que viver como terráquea. Nós, quando criamos essa lei, prevíamos que poderiam haver casos como o seu, embora soubéssemos da pouca importância que os cornianos dão aos conceitos de maternidade e paternidade como os entendemos. Em casos excepcionais, o Conselho tem parâmetros para abrir precedentes, mas em hipótese alguma uma criança nascida de terráqueo e corniano poderá viver em Cornos na vigência da Lei. Vá e volte daqui a três meses. Se esse filho for tão importante assim para você e para o Alan, certamente vocês não se importarão de abrir mão da vida que têm aqui para iniciar uma nova vida em algum lugar da Terra. Lembre-se ainda que você não terá outros amantes. Sua vida com um terráqueo será somente com ele. Pense em tudo isso e volte no prazo previsto. Tenha um bom dia.

 

Tutôr não foi tão flexível quanto Réa em relação ao caso de Pautros. Simplesmente disse ao líder dos selvagens dissidentes que o direito de ir e vir estava estabelecido em Cornos e que eles teriam que aprender a conviver com os turistas, cornianos ou terráqueos, sugerindo até que organizassem alguma espécie de atividade que lhes fosse rentável, explorando a presença dos turistas:

- Chefe, parece ter esquecido que nós não usamos dinheiro.

- Mas podem trocar os serviços oferecidos por alguma coisa.

- Não precisamos de nenhuma bugiganga terráquea. Fazemos os nossos próprios instrumentos de trabalho e utensílios, vivemos felizes sendo como éramos antes dessa invasão. Quando a Almirante nos designou essa área para viver foi porque nós queríamos distância de toda essa realidade. Então já tomamos a nossa decisão: vamos nos mudar. Faremos a aldeia em outro lugar, onde vocês não possam nos encontrar.

- O satélite sabe exatamente onde há agrupamentos humanos, Pautros. Em breve, os turistas os alcançariam. Que tal um acordo? Que tal permitir visitas à aldeia apenas uma vez por semana, aos domingos?

- Nosso povo não usa a sua contagem de tempo.

- Isso não importa, Pautros. Mas vocês não seriam incomodados a não ser uma vez em cada sete dias. Olhe, é o melhor que eu posso fazer por vocês. Afinal, a sua turma acredita que pode voltar ao passado. Mas o presente vai sempre persegui-los, acredite. O que houve com o nosso povo é irreversível.

- Isso é o que você pensa, chefe Tutôr. Nós não queremos nada com esse estilo de vida. Voltamos à nossa natural maneira de viver.

- Não voltaram. Hoje todos vocês têm conhecimentos que não tinham antes, já são homens e mulheres diferentes do que eram antes, seus pensamentos são outros, já não podem mais acreditar no que acreditavam antes.

- Por que não? Na nossa aldeia, celebramos os velhos cultos e voltamos a crer que a noite é apenas o manto dos deuses a cobrir a luz. E somos felizes como éramos antes.

- Felizes e doentes também? Mal alimentados? Sem remédios? Sofrendo?

- Os deuses têm as razões deles para nos fazer sofrer. Nós podemos agüentar.

- E as crianças? Devem se submeter ao que vocês querem, quando poderiam ter uma vida muito melhor?

Pautros riu:

- Você é que acha a sua vida melhor. Nós achamos melhor a nossa e as nossas crianças são nossas, temos todo o direito sobre elas.

- Bom, é mesmo inútil discutir com você. Vou conseguir que o turismo só possa ir a sua aldeia aos domingos. E isso é tudo.

 

 

Uma semana depois, Melina morreu no compartimento de carga, despressurizado, de uma nave de transporte. Ela tentava fugir para o continente onde estava o seu amado, sem ter que se submeter à esterilização temporária obrigatória para viajantes cornianos.

A aldeia de Pautros teve que se conformar com a presença semanal dos turistas, mas começou a pensar em criar técnicas para afugentá-los, para tornar a sua estada lá incrivelmente desagradável. Tarefa difícil para cornianos, nunca antes acostumados a atitudes negativas.

Na noite em que soube da morte de Melina, Réa, refugiada nos braços de Tutôr, disse a ele:

- Esse foi o meu primeiro grande erro em Cornos.

- A morte dela?

- Não. O erro foi subestimar a capacidade de revolta de um corniano. Cuidado, Tutôr, para não cometer o mesmo erro em relação a Pautros. Em sete anos, muita coisa mudou em Cornos e agora talvez o coração corniano, sempre tão cordato, sensato, generoso, esteja também num processo de transformação.

 

20. A Volta

 

Nos meses seguintes muitos departamentos públicos da administração das aldeias foram obrigados a pedir a liberação de mais imigrantes terráqueos para a Área Neutra. Tudo começara lentamente, com alguns cornianos que iam à Aldeia de Pautros e, de repente, decidiam se juntar aos selvagens dissidentes de forma definitiva.

O pessoal terráqueo da psicologia, que analisava as dissidências, foi quem deu o primeiro alarme. Era como uma epidemia. Os cornianos, que até então eram cordatos e se mostravam encantados com os conhecimentos e o novo estilo de vida que os terráqueos, agora passavam a questionar a necessidade de trabalhar algumas horas por dia, de usar roupas e cuidar delas, de precisar de dinheiro para obter as máquinas, a comida, o conforto, tudo! Era como se estivessem se cansando da brincadeira. Um deles, ao justificar sua decisão de abandonar tudo e partir, dissera a um psicólogo:

- Viver como terráqueo foi bom, mas agora estou cansado de brincar disso. Quero voltar a andar nu, pescar e caçar, dormir quando tenho vontade, não fazer nada quando nada quiser fazer. Vou embora.

Em um ano, mais de metade da população das aldeias se bandeara para a tribo dos selvagens. Ninguém voltara.

Até mesmo Télia, a dona da agência de turismo, certo dia organizara uma excursão e resolvera também não voltar.

A mídia da Terra explorava isso e, ao mesmo tempo, divulgava para os cornianos que ainda viviam na Área Neutra, imagens de cornianos como eles, vivendo felizes, puxando seu fumo nos cornos da alegria, dançando com as crianças e cantando em reuniões festivas.

Uma estranha nostalgia foi atingindo o coração dos que ainda viviam na Área Neutra. Era muito bom ter máquinas pensantes, era ótimo enxergar à noite sem tem que acender o fogo, era sensacional ter água encanada e mais sensacional ainda poder assistir aos filmes holográficos. Mas manter tudo isso dava muito, muito trabalho e, depois de um certo tempo, a vida ficava monótona. Pior ainda que a monotonia era a obrigação, o relógio, o trabalho repetitivo fazendo com que os dias fossem sempre um igual ao outro, sem surpresas, sem liberdade. Melhor, concluíam os cornianos, não ter nenhuma máquina e poder viver como se lhes dava na cabeça: livres para caçar, pescar, dançar, cantar, comer e fazer amor...tudo sem aquela coisa insuportável da hora marcada. Não era à toa – refletiam eles – que os terráqueos, a despeito de todo o seu conhecimento e de todas as maravilhas que podiam realizar – passavam metade da vida de mau humor. E, assim, conversando e refletindo, todos iam chegando à mesma conclusão: sua vida, antes, era melhor, mais alegre, mais livre, mais feliz.

Réa andava nervosa, perguntando-se aonde e em que tinham errado.

Tutôr também andava nervoso e evitando a companhia dela, se concentrando em seu próprio grupo, ficando muito mais tempo com os filhos e com Marla.

Certa noite, para a surpresa da Almirante, o Chefe apareceu em sua casa:

- Réa, quero ir embora de Cornos. Marla, eu e os meus filhos decidimos que queremos viver na Terra. Isso é possível, não é?

- Nunca nenhum corniano pediu isso, Tutôr. Mas é claro que é possível. Desde que você não se importe em sofrer esterilização definitiva, você e Marla. As crianças poderão fazer suas vidas como se fossem cidadãs da Terra. Mas como você vai sobreviver? Terá que trabalhar, provavelmente vocês dois. É claro que existem muitas coisas que vocês estão habilitados a fazer e não faltam empregos na Terra hoje em dia. Mas lá você será apenas um cidadão comum, sem os privilégios que tem aqui. Além disso, vai abandonar seu povo?

- Ele é que me abandonou Réa. Mais de metade do meu povo já fugiu do meu governo para a aldeia de Pautros. Talvez ele esteja certo e eu, errado. Talvez eu seja mesmo um traidor e tenha me deixado maravilhar pelos conhecimentos e pelo estilo de vida de vocês. Então, penso eu, se me tornei um terráqueo e já não sirvo mais para chefiar o meu povo, devo ir para a Terra.

- Mas e os que ficaram? Você vai abandoná-los?

- Ouça-me, querida, eles não ficarão por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, todos se unirão aos selvagens. Essa é a nossa maneira de viver: selvagemente. Mesmo que tenhamos conhecido a civilização da Terra, esse é o nosso verdadeiro estágio. Só mesmo eu e Marla é que não queremos retornar à velha vida. Mas, entre os que ficaram, adivinhamos o desejo de ir. Está nos olhos deles. De todos. Réa, arrume um lugar para mim na Terra.

- E eu? Você vai me deixar?

- Toda a Área Neutra perderá o sentido. Você também vai perder o sentido. Sua missão aqui está terminando, Réa, pode acreditar. Nos encontraremos um dia, quando você também voltar à Terra.

- Não, Tutôr. Isso não vai acontecer. Você está enganado. Há muitos cidadãos cornianos que estão felizes aqui e tudo isso aqui vai continuar e progredir.

Tutôr apenas deu-lhe um beijo na testa e disse:

- Vou embora agora. Promete que vai arranjar as coisas para a minha transferência, a de Marla e a de meus filhos para a Terra?

- Se é o que você quer. Pense melhor.

- Já pensei. Prometa.

- Está bem, eu prometo.

Réa dormiu mal à noite e chegou ao gabinete acreditando que Tutôr estava errado e que muitos dos cornianos que se bandearam para a aldeia de Pautros acabariam se arrependendo e, sentindo falta da vida confortável e rica, voltando. Mas Arvos e Iala a esperavam.

- Almirante – disse Arvos – tenho passado todos esses anos entre os terráqueos, aprendi muito e muito, estudei suas crenças, me apaixonei por sua música, mas agora o meu povo, a maior parte dele, está entre os dissidentes e sinto que é meu dever estar também entre eles. Assim, vim me despedir. Acho que não teremos mais oportunidade de conversar e saiba que essas conversas, assim como as máquinas de música, vão me fazer muita falta. Mas o meu destino é estar entre o povo, prover-lhe as necessidades espirituais e sou mais necessário hoje lá do que aqui.

- Eu também – adiantou-se Iala. – Sem os seus modernos medicamentos, sem o conhecimento da Terra na arte da cura, nosso povo está sozinho lá na aldeia e precisam novamente das minhas ervas.

O mundo de Réa parecia desmoronar. Sua proverbial segurança desaparecera e ela balbuciou:

- Mas Iala...seu curso de medicina?

- É claro que os conhecimentos que adquiri me auxiliarão a encontrar novas ervas e novos usos para aquelas que já conheço. Mas o meu povo se foi e muitos, dos que ficaram, acabarão indo também. Lamento que seja assim, Almirante. Ninguém melhor do que nós sabe o quanto você trabalhou, o quanto sonhou e ousou para criar para o nosso povo uma vida melhor. Mas não foi essa vida que eles preferiram. Lamento.

Iala tinha lágrimas nos olhos. Arvos também.

- Espero que compreenda, Almirante – disse ele. – Foi uma grande lição para nós tudo o que aconteceu. Seu trabalho não foi em vão. Eu mesmo tenho hoje uma outra visão do Universo, mas ainda assim nada me impedirá de acreditar que a noite seja o manto dos deuses.

 

E, assim, dia após dia, os cornianos foram deixando a Área Neutra e se mudando para a aldeia de Pautros, agora seu novo líder.

Tutôr realizou seu sonho e foi para a Terra, morar no Brasil, em Salvador, Bahia.

A Área Neutra perdeu o sentido.

As casas e os estabelecimentos foram abandonados.

E a Frota Espacial decidiu manter os terráqueos longe daquele continente, considerado propriedade dos nativos, e para estes instituiu uma Fundação que investiria, no próprio planeta, os recursos financeiros que os cornianos desprezavam, fruto de seus impostos recebidos pela exploração dos outros continentes. Tutôr recebeu um alto posto nessa Fundação, mas todos os outros membros pertenciam ao governo terráqueo de Cornos e da própria Terra.

O que outrora fora uma aldeia transformada em cidade de sonhos, era agora uma cidade fantasma.

 

Na sua última noite em Cornos, antes da viagem de volta para o seu planeta natal, Réa foi ao terraço de sua casa, de onde tantas vezes mirara aquele Firmamento, e perguntou a Deus por que e aonde fracassara. Mais uma vez, não obteve a resposta. Tinha dedicado quase uma década de sua vida aquele povo e eles haviam preferido voltar a ser o que eram antes.

Cornos era uma colônia em franco desenvolvimento, gerando riquezas para si própria e para a Terra. Mas a Área Neutra fora um fiasco retumbante!

Fitando o céu, Réa pensou que a noite talvez não fosse de fato o resultado do movimento de rotação do planeta, mas que pudesse ser um manto, estendido pelos deuses, com o devido cuidado de deixar pequenos furos no tecido, por onde passasse um pouquinho de luz, dando a certeza de que, mais tarde, no tempo certo, toda a luz retornaria à vida, banhando-a com seus ouros e pratas.

Era noite agora no coração de Réa e nunca, em toda a sua trajetória de sucessos, ela se sentira tão pequena, tão só. Nesse momento, em todo o infinito universo, ela estava só. Ela, o poder e as estrelas.

 

FIM                                                              

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