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Os 50 Anos da Rosa

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

Atualizado: 8 de jan.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Um romance sobre as mães que têm filhos especiais. O romance é ficção e seus personagens são invenção. Mas, enquanto rola a história, você vai conhecendo a história verdadeira da Sociedade Pestalozzi de São Paulo, que, há meio século (1952-2002), cuida de centenas de crianças especiais preparando-as para uma adequada inserção na sociedade. Hoje, 2025, ela ainda existe e funciona, no mesmo endereço, com o nome de ABADS - Ass. Brasileira de Assistência e Desenvolvimento Social. Leia a seguir, grátis.


Capítulo 1 - Diferentes


Maria Cristina entrou na Av. Rubem Berta pelo acesso da Av. dos Bandeirantes. Tudo parado. E ela precisava cruzar cidade em 25 minutos. Com o trânsito desse jeito... não sei não – pensou ela. Mas, por sorte, tinha dado um celular pré-pago para o filho e, caso se atrasasse, poderia avisá-lo, para que ele não ficasse nervoso.


Era preciso sempre cuidar para que Rogério não se enervasse. O delicado equilíbrio emocional do garoto poderia ser facilmente rompido por qualquer incidente. Tantos sonhos e tantos planos fizera para aquele filho e ele assim, com aquela doença mental inexplicável.


Presa no congestionamento, Maria Cristina tenta não pensar no problema do filho, pelo menos ela tem a consciência em paz: até aqui, tinha feito tudo o que era possível e até o era remotamente possível no sentido de levar Rogerio a uma vida de normalidade.


Mas, neste momento, ela prefere pensar em Thomas. Tinham coincidentemente descido juntos, no elevador, para a hora de almoço. Foram apenas alguns instantes e no meio de tanta gente espremida. Seus olhos se encontraram e ela leu, nos dele, exatamente o que desejava e temia. Paixão. E, só de pensar, sobe-lhe pelo corpo um coisa morna, quente, aflitiva... mas ótima. Ao mesmo tempo um sentimento de culpa. O homem é lindo, diretor da empresa, charmoso e elegante, mas é casado...Ela ri do pensamento, lembrando-se de O Pequeno Príncipe : “Nada é perfeito – suspirou a raposa”.


No entanto, ele estava visivelmente interessado nela e, pior, nem se dava ao trabalho de esconder esse interesse, manifestado claramente na frente de quem fosse, no escritório. Uma atitude temerária, julgava ela, e que causava alguns constrangimentos. Até seus olhares se cruzarem no elevador – fôra há pouco – Maria Cristina fingira não perceber o interesse dele. Mas, hoje, tinha certeza, seu próprio olhar a traíra. Como – justificava-se ela – não se sentir atraída por um homem daqueles? Como não sucumbir ao seu interesse, todos os dias manifestado de alguma forma, ele passando sempre que possível pela sala dela, insinuando coisas, com aquele olhar apaixonado... E ela, constrangida, temendo a inevitável fofoca do pessoal, pensando na mulher dele que ela encontrava às vezes em eventos da empresa, jantares...Como seria o relacionamento deles? Talvez bom e ele apenas fosse dado a eventuais aventuras. Nesse caso, ela seria mais uma. Mas se ele quisesse apenas uma aventura, por que fazia questão de tornar isso público e, ainda mais, no ambiente de trabalho?


Aos 33 anos, Maria Cristina julgava saber distinguir as intenções alheias pelos olhares e atitudes. Thomas parecia apaixonado. Aliás, agia como um adolescente apaixonado, apesar de já estar na casa dos cinquenta e da enorme aliança que trazia na mão esquerda.


No começo, há uns tres meses, Maria Cristina achava que eram um pouco exageradas as demonstrações de simpatia; depois, começou a esperar pela cantada, puramente sexual, que ela julgava que viria e da qual certamente se esquivaria. Mas o tempo foi passando e a tal cantada não veio. E, quase sem perceber, ela começou a esperar pelo momento do imprevisível ritual diário de Thomas: passar pela sua sala, dizer gentilezas e elogios... E nos raros dias em que ele não vinha, Maria Cristina fechava tristemente sua mesa no final do expediente, com uma sensação de vazio no peito. Começou a se surpreender pensando nele a qualquer momento. Começou a sentir vontade de estar com ele, de conhecê-lo melhor, saber de seus hábitos e gostos...Agora era preciso admitir: estava completamente apaixonada por ele. Seus olhos ,no elevador, se refletiam em todos os vidros traseiros de todos os carros na avenida congestionada.


Ele a conquistara, pensa ela. E lembra de novo da raposa do Pequeno Príncipe: “Para amar é preciso ritos”.


Era um embrulho a situação, reconhece ela. Se tivesse um caso com um executivo um nível acima dela na empresa...Bom, poderia estar colocando em risco uma posição invejável e conquistada a duras penas.


Filha mais nova de uma família de classe média alta do interior do estado (seu pai era um juiz respeitado e pertencente à elite política e cultural da cidade), Maria Cristina ficara grávida aos 19 anos e sem ter se casado. Poderia, caso se importasse com a repercussão social de sua gravidez solteira, ter abortado. Muitas de suas amigas fizeram isso sem maiores problemas. Maria Cristina, no entanto, queria ter o filho e, além disso, não tinha a menor disposição de casar-se aos 19 anos. O rapaz, o pai, era seu colega de faculdade e fôra para ela apenas um gostoso caso de amor, um bom namorado. Só isso. Para a sua vida, tinha outros planos: carreira profissional e casamento poderiam esperar. O filho, pensava ela então, em nada atrapalharia pois recursos havia suficientes para criá-lo com conforto e sem atrapalhar seus planos. Fõra uma convulsão familiar. Mas ela, por fim, conseguira vir morar sozinha em S.Paulo, num bom apartamento nos Jardins e o pai arranjara-lhe transferência do curso que ela fazia para o segundo ano de administração numa tradicional escola paulistana. 


A gravidez correu normalmente e houve um período de pura festividade enquanto ela arrumava e decorava o quarto do bebê. Parto normal, ela fez questão. Quando desmamou, aos sete meses de idade, Rogerio foi matriculado numa escolinha de bebês porque Maria Cristina já conseguira um emprego. Não que ela precisasse trabalhar para viver, a família cobria suas necessidades. Mas porque para uma mulher como ela a improdutividade era mais ou menos como a morte.


Trabalhou três anos como representante de uma importante indústria farmacêutica e conseguiu administrar com sucesso a casa, a empregada, a escolinha de Rogerio e a faculdade. Tinha uma organização extrema em todas as suas atividades e orgulhava-se de ser assim. Se hoje era uma executiva, gerente de produto, num grande laboratório farmacêutico, metade devia-se ao seu senso de organização.


Só Rogério, que até os tres anos  tivera um desenvolvimento normal, parecia fora de compasso em sua vida. Os primeiros sinais vieram da escolinha. Desatento, dispersivo, diziam as psicólogas e professoras. O pior de tudo, nessa fase, refletia Maria Cristina, fôra ir percebendo que Rogério incomodava a todos na escolinha, que as professoras e psicólogas na verdade sentiriam um grande alívio por se livrar dele. Era cruel, mas era o sentimento de uma instituição que precisava pensar primeiro na sua própria sobrevivência e um aluno “diferente” e que criava embaraços para todos não se encaixava no modelo de eficiência que a própria instituição deveria demonstrar aos seus clientes. Rogério, enfim, era indesejado, pois era diferente e diferença era sinônimo de desordem...A psicóloga (uma cretina, pensa Maria Cristina) da escolinha chegara a insinuar que ela deveria matriculá-lo numa escola especializada.


Depois veio o inferno da peregrinação de médico em médico, de psicólogo em psicólogo, de psiquiatra em psiquiatra. Exames e mais exames, hipóteses e mais hipóteses. Mas, quando ele estava com seis anos era impossível não ver a diferença. Ele não se adaptava a nenhuma escola, enlouquecia as babás... e não conseguia aprender as primeiras letras. Foi nessa época em que um santo médico detectou algo diferente num eletroencefalograma. Perguntou à Cristina se ela se lembrava de alguma coisa especial, quando ele tinha dois anos, dois anos e pouco. Sim, ela se lembrava. Fôra o ano da febre. Ele tivera um febre muito alta e constante, acima do que seria de se esperar numa criança de sua idade, por um tempo prolongado. “Traços de encefalite infantil” diagnosticou o médico. Alguma coisa, mas ninguém sabia bem o que, deixara de funcionar no cérebro afetado pela febre e pela inflamação. Daí para a frente esse foi o diagnóstico aceito por Maria Cristina. Era insatisfatório, mas era uma explicação.


Era também um alívio saber que seu filho adquirira a deficiência e não nascera com ela. Sentia-se menos culpada. Mas nem por isso evitava comentários maldosos como “há mais alguém com esse problema na sua família, querida?”  


Nervoso, Rogério frequentemente tinha que fazer uso de medicamentos, não conseguia se manter nem em escolas especializadas, pulando de uma para outra e causando infinitas dores de cabeça a Maria Cristina. Isso, sem contar a tristeza. Rogério era um menino de corpo forte e sadio, de belos traços, uma beleza até incomum, de chamar àtenção. E ela não conseguia se conformar com o pensamento de que aquele belo exemplar de ser humano, que era seu único filho,jamais teria uma vida de curso normal. Estava condenado à ignorância e à improdutividade.


Sua única esperança eram os avanços científicos. Por isso ela mergulhou em toda e qualquer informação sobre o conhecimento neurológico. Seu próprio trabalho, na indústria farmacêutica, facilitava-lhe o acesso à mais moderna informação científica nessa área. Houveram avanços notáveis nos últimos cinquenta anos, em particular nos últimos dez, mas a ciência ainda estava longe de desvendar os mistérios do cérebro.


Nem os mistérios do coração – sussuraram-lhe os seus próprios pensamentos. Maria Cristina sente, com um misto de prazer e de temor, que não pode nesse momento, governar o coração. Não consegue, por mais que a razão lhe diga que esse amor não tem futuro, conter o coração.

Como explicar esse novo estado mental que tomara conta dela? O mundo ficara mais brilhante e mais belo, o dia tinha cores que ela jamais notara antes... E tudo isso porque ela estava com a doença mental da paixão. Maria Cristina sorri à lembrança de um professor de psiquiatra que ouvira recentemente num programa médico de TV afirmando que “paixão também se cura com antidepressivo”.


Estar apaixonada é ótimo, conclui ela. O problema era por quem ela fôra se apaixonar. Um sujeito casado, seu superior hierárquico no trabalho e, pelo jeito, um pouco indeciso, já que a côrte antiga que ele lhe fazia já durava quase meio ano...


Só Deus sabe o que ela enfrentara, na vida profissional, para conseguir a posição que ocupava hoje e certamente não colocaria em risco essa posição por causa de uma paixão adolescente como a que sentia agora. Mas, nesse caso, o que fazer com aquela queimação no peito, aquele brilho no olhar, aquele desejo de estar com ele, de conhecê-lo, de acariciá-lo? Ignorar? Como é possível ignorar um sentimento? Maria Cristina não sabe o que fazer. Sente-se subitamente desamparada, ela que sempre se sentira a rainha do mundo, que orgulhava-se de sua posição e de nunca ter esmorecido na luta cotidiana contra a doença do filho. Como pôde ela se apaixonar por um sujeito que, na verdade, mal conhece? Reuniões de trabalho, acontecimentos sociais profissionais...E aquelas incursões cotidianas à sua sala...Seis meses...e ele nem a convidara, ao menos, para um drink de happy hour  ou para um almoço.


E se tudo não passasse de fantasia sua? E se ele apenas a achasse simpática e interessante e fosse esse o seu jeito de demonstrar amizade? Amizade?? O homem parecia mesmo um garoto apaixonado, estava claro, e ela até surpreendera uns olhares insinuadores em sua própria secretária... Mas ela também nunca o encorajara. Sempre o tratara com cortesia mas desviando os assuntos para o trabalho, sempre fingindo não perceber...


A esta altura, já venceu lentamente a avenida e cruzou lentamente o centro da cidade, pelo Vale do Anhangabaú e já está quase no acesso à Marginal.

- Crista ! – grita alguém no meio da balbúrdia do trânsito.

Cristina está com as janelas fechadas, mas mesmo assim ouve, como se ouvisse ao longe. Aperta o botão do vidro e, logo no carro parado ao lado do seu no trânsito, avista Cidinha, que gesticula e grita seu nome a plenos pulmões.


- Oi Cidinha – grita ela de volta. Está vindo de lá?


- Fui levar umas coisas pra Rosana e já estou voltando pro salão. Hoje está cheio, você sabe, é sexta.


Cidinha é a mãe de Rosana, companheira de Rogério na Sociedade Pestalozzi. O trânsito anda e elas se separam. Os pensamentos de Crista se dirigem agora para Rosana. Outro problema. A menina tem síndrome de down, a Cidinha se mata de trabalhar para manter seu pequeno salão de beleza num bairro pobre, o marido não aceita a filha doente, um drama! A menina é a caçula dos quatro filhos de Cidinha. Quando Rosana nasceu seu irmão mais novo já tinha 12 anos. Foi uma gravidez tardia e isso às vezes faz com que as crianças nasçam com a Síndrome.


Maria Cristina sabia que uma, em cada 550 crianças (o que ela considerava um número altíssimo) nasciam portadoras da síndrome. O risco de isso acontecer crescia para 4,5% nas mulheres grávidas com mais de 45 anos. Fôra o caso da Cidinha. Gravidez tardia e não planejada. Tão pouco esperada mesmo que fora, no início, confundida com a menopausa. Mas o caso de Rosana era perceptível logo que ela nasceu. O bebê down já tem suas diferenças dos outros. Diferente de Rogério, pensa Cristina, que conseguiu uma lesão cerebral como consequência de uma febre altíssima da encefalite. Hoje não se pode mais chamar os portadores dessa síndrome de mogolóides, numa alusão a semelhança física com a raça dos mongóis. Mas sua aparência, de fato, se destaca, chama atenção das pessoas na rua, em toda a parte. E há sempre um curiosidade meio mórbida, um tanto cruel – pensa Cristina – em torno dos deficientes. Há uma coisa porém, nos portadores de Down, que impressiona muitíssimo. Eles transmitem uma alegria imensa, acalmam o ambiente, são delicados e muito carinhosos. Na verdade, continua Cristina em pensamentos, eles não deveriam ser chamados deficientes. Na verdade eles podem ter um físico diferente e apresentar um desenvolvimento mais lento, mas o que os diferencia não é uma deficiência: ao contrario, os Down têm um cromosso a mais. Essa é a diferença: em vez de um par de cromossomos 21 eles têm três cromossomos 21. Um a mais.


Crista chega à porta Sociedade Pestalozzi. Rogério a espera junto ao portão. “Ele parece um adolescente como qualquer outro” pensa ela ao ve-lo entrar no carro.

Hoje vão almoçar juntos. Nem sempre os compromissos profissionais permitem que Crista almoce com o filho. Costuma levá-lo a bons restaurantes e ele, que fora muito bem educado, sabe se portar convenientemente. Come depressa demais, no entanto, e é preciso estar sempre a chamar-lhe àtenção.   


Capítulo 2 - 1952

 

Rosa desceu do bonde pensando, não sem ansiedade, nessa nova missão que a vida lhe confiava.


Era o dia 20 de setembro de 1952 e ela agora sabia que teria que  enfrentar o primeiro dia de convivência com as oito crianças que seriam as primeiras beneficiadas pela recém fundada Sociedade Pestalozzi de S.Paulo. Não, não seria hoje, graças a Deus, talvez daqui a três meses, lá pelo começo do ano. Mas ela já sabia que a missão seria sua.


No dia 15 fôra fundada, oficialmente, a Sociedade em S.Paulo e o Professor José Maria de Freitas, um dos fundadores, a designara para ser lotada na função. Rosa trabalhava no hospital das Clínicas e convivia com os professores envolvidos na iniciativa. O presidente da recém criada Sociedade era o Prof. Antonio Carlos Pacheco e Silva, eleito em assembléia realizada na Associação Paulista de Medicina, com a presença de importantes figuras da sociedade paulistana e também da genial Helena Antipoff, fundadora da primeira sociedade no Brasil, em Belo Horizonte e introdutora das idéias  do educador italiano, Giovanni Enrico Pestalozzi, no país.


Agora caberia a ela, Rosa, tomar conta das primeiras crianças excepcionais que encontrariam abrigo na recém fundada sociedade. Ela, pouco mais que uma menina, mas já experiente no trato com pessoas especiais, às quais se dedicara nesses dois anos de trabalho no hospital. Era muita responsabilidade, refletia Rosa, a caminho do trabalho. Tinha um pouco de medo, mas não se negaria a enfrentar o que a vida lhe propunha.


Rosa, moça de origem simples mas de família sólida, refetia: Diziam que os ricos eram todos uns exploradores, “tubarões”, pela gíria vigente, devoradores do trabalho dos pobres. No entanto, parte da fina flor da sociedade paulistana se dera ao trabalho de fundar uma instituição e contribuir financeiramente, com o objetivo de educar e preparar para a vida as crianças que nasciam com alguma deficiência mental. Era ou não era uma iniciativa digna de louvor? E mais: propunham-se a formar educadores para essas crianças, para ensinar a elas um ofício, para que tivessem também um lugar e um propósito na vida, através do trabalho. Uma coisa nobre, digna de nota. E iniciativa dos tais dos tubarões.


A voz do povo nem sempre é a voz de Deus, conclui Rosa e sente orgulho de ter sido escolhida para participar de tal iniciativa. Daqui a algumas semanas estará no primeiro curso de formação de técnicos que atuarão segundo os princípios propostos por Giovanni Pestalozzi e se sentirá, então, mais preparada para aquele que - ela intui- há de ser o grande trabalho da sua vida.


Capítulo 3 - Melhor Tivesse Nascido Morta

 

Cidinha entra apressada no seu pequeno salão de beleza. Sabe que a manhã foi rentosa e precisa pegar o dinheiro do caixa para pagar as contas da casa, antes que o marido o faça.  Hoje levou Rosana muito tarde à Pestalozzi, porque teve uma manhã confusa e cheia de problemas. Pedro, seu marido, bebera demais na noite anterior e, como sempre acontece depois das bebedeiras, acordara de mau humor. Os outros filhos tomaram café, saíram para a escola e quando Pedro acordou, ela já estava se preparando para levar Rosana. Mas ele acordara aos gritos, dizendo que a menina que se danasse, que ele queria café e ovos, como convém a um digno chefe de família, que não era porque ele estava desempregado que deveria ser mal tratado pela própria esposa.


Rosana se trancara no quarto das crianças, apavorada com a explosão de nervos do pai.


- Você só pensa e só cuida dessa débil mental! – explodira ele – Os meus outros filhos que são normais não merecem nada! Eu não mereço nada! Tudo o que você faz é para essa inútil, essa retardada, esse excremento humano. Melhor tivesse nascido morta, essa infeliz! Você vai me servir o café e depois, se sobrar tempo, vai cuidar desse animalzinho, está ouvindo?


Cidinha fixara os olhos na garganta do marido, onde as veias azuis saltavam, e pedira a Deus que não a deixasse chorar. Já era o bastante que a pobre Rosana ouvisse todo aquele discurso, não precisaria ela também de uma mãe chorona.


Pacientemente preparou o café de Pedro, caprichou na mesa, colocando uma bela toalha, e o serviu. Enquanto ele comia, foi dar uma olhada na filha, que se fechara no quarto das crianças. Ela parecia estar bem, conversando com uma de suas bonecas. Mas Pedro sabia ser cruel e demorou mais de uma hora à mesa, comendo devagar, sorvendo goles de café e dando uma olhada nos jornais do dia. Só se levantou de lá às 10 e meia da manhã e saiu, sem nem olhar para a esposa. Sabe Deus aonde iria ele! E nem banho tinha tomado.


Cidinha correu ao salão de beleza, que ficava na garagem da casa. Suas funcionárias já estavam trabalhando, havia duas clientes, uma fazendo as unhas e a outra lavando os cabelos. Eram 11 e 10 quando ela conseguiu colocar Rosana no velho fuska e sair, enfim, para levar a filha à Pestalozzi. Sabia que a menina estava perdendo uma aula preciosa, mas ainda poderia desfrutar do almoço e participar das oficinas de jardinagem no período da tarde. Enfrentou um tremendo congestionamento de trânsito na Radial Leste e só conseguiu chegar à Marginal, onde fica a Pestalozzi, na hora do almoço. Deixou Rosana junto aos seus companheiros, no refeitório, e aí então seus nervos explodiram. Começou a chorar.


Estava saindo quando encontrou a Dona Rosa. A velha senhora, do alto da experiência de suas sete décadas de vida, percebeu logo o estado de nervos em que se encontrava a pobre da Cidinha e levou-a a uma sala reservada, onde poderiam conversar. Cidinha, a princípio, ficou ainda mais nervosa. Afinal, ela precisava voltar para casa, dar uma olhada no salão, preparar o almoço para seus outros filhos que chegariam da escola e ainda, quem sabe, ter que enfrentar a fera do marido. Mas quem poderia dizer não à Dona Rosa?


Sentaram-se, as duas, no confortável sofá, defronte ao grande armário onde repousavam todos os troféus ganhos, em competições esportivas, pelas crianças da Pestalozzi, nesses cinqüenta anos de atividades.


- Sabe, Cidinha – disse a Dona Rosa – alguns acreditam que as crianças especiais são anjos que Deus coloca em nossas vidas.


- Ah, Dona Rosa, a senhora me desculpe, mas esses anjos infernizam as nossas vidas, às vezes.


Rosa sorriu.

- Em 1953, quando participei do primeiro curso para professores da Pestalozzi, eu também me perguntava porque Deus teria permitido que existissem crianças assim. No entanto nunca sequer descobri porque Deus permite que existamos. De lá para cá, sempre convivi com elas. Com as tristezas e também com as alegrias. Rosana é também motivo de alegria para você, não é?


Cidinha conseguiu sorrir, lembrando da filha que, aparentemente indiferente à explosão de Pedro, conversava com a boneca, agora há pouco. Rosa continuou:

- Não podemos contestar os desígnios de Deus. A vida é uma dádiva e talvez as nossas crianças, tão especiais, sejam uma lembrança disso. Elas apenas vivem, indiferentes às nossas necessidades de status, posição, conquista...E nos impõem a missão de prover-lhes as mais básicas necessidades. A nós, cabe apenas aceitar isso. Sabe, a primeira turma de crianças da Pestalozzi, era composta de oito meninos. E eu tinha a missão de cuidar deles. Eu dormia ao pé da porta do quarto deles para que, se tentassem fugir, tivessem que passar por cima de mim... Eu aprendera, então, assistindo ao Congresso Latino Americano de Saúde Mental, que o importante não era procurar os porquês, mas descobrir os comos: como lidar com eles, como integrá-los à nossa vida... Em 1954 a Pestalozzi inaugurou uma sua primeira clínica psicológica, que funcionava ali na rua Luiz Coelho. Com os profissionais de lá e com outros que se seguiram eu fui aprendendo que o importante é tentar dar, a esses seres excepcionais, apenas condições de viver com dignidade e paz. Isso não é uma missão impossível.


- Mas as vezes parece impossível – disse Cidinha.


- Você teve problemas de novo com o Pedro?


- Ah, Dona Rosa! Por ele seria melhor que a Rosana tivesse nascido morta!


- Os homens têm mais dificuldade que nós em aceitar as crianças, todas as crianças, que dirá as diferentes.


- Ele reclama, Dona Rosa. Diz que eu só me preocupo com ela! Não é verdade. Deus é testemunha de quanto trabalho eu tenho com os outros, de quanta preocupação...


- Mas você gosta mais dela, não é verdade?


- Isso eu tenho que admitir mesmo. Não é que eu goste mais, todos os nossos filhos são queridos...mas ela precisa mesmo de mais atenção... e ela tem um sorriso...um astral...um jeito meigo que os outros não tem.


- Eu estou te dizendo, Cidinha. São anjos.


- Ai, Dona Rosa, a senhora é que é um anjo. Deve ter tanto trabalho aqui para fazer e perde tempo comigo.


- Temos 495 crianças hoje na Pestalozzi. 495 famílias que formam uma só família. Tempo não se perde, se ganha. Além disso eu não ia permitir que você saísse dirigindo por esse trânsito maluco nervosa daquele jeito. Está melhor, agora?


- Estou, sim. Graças a senhora. Mas agora tenho que ir. Ainda não fiz o almoço dos que vão chegar da escola, nem mesmo tive tempo de arrumar as camas...E ainda tenho que olhar o salão de beleza. A senhora sabe, o olho do dono...


- Vá com Deus, minha filha.


A conversa com Dona Rosa tivera mesmo o poder de acalmar a Cidinha. Por isso, quando ela encontrou Crista, no Vale do Anhangabaú, pôde cumprimentar a amiga com seu melhor sorriso.


Crista era um mistério para Cidinha. Uma moça rica (aquele carrão imponente!), mãe solteira, com aquele filho deficiente... Ela poderia tê-lo internado numa dessas clínicas caras e esquecido de sua existência. No entanto, todos sabiam, Crista colaborava com muito dinheiro para a Pestalozzi e fazia questão que seu filho estudasse lá, fazia questão de morar com ele, de estar sempre perto dele. Um dia mesmo confessara à Cidinha:


- Antes de ter o Rogério e até mesmo depois que ele nasceu, eu sofria todos os meses com uma bravíssima Tensão Pré Menstrual. Mas, de uns anos para cá, quando a TPM ataca e eu começo a ficar nervosa, é Rogério quem me acalma. Parece que dele emana uma paz, uma coisa que eu não sei explicar...Aí eu olho pra ele e...pimba! Fico instantaneamente calma.


É, conclui Cidinha, em pensamentos, talvez sejam os anjos.


O trânsito estava milagrosamente bom e ela voltou rapidamente para casa. Tratou de ir logo ao salão, antes que o marido voltasse e passasse por lá para meter a mão no caixa. O movimento da manhã fôra bom e ela tratou de esconder o dinheiro, que faria falta para as despesas da casa, se o brutamontes do Pedro o pegasse. Mas deixou algum para que ele não fizesse outro escândalo quando, no fim do dia, fosse consultar o caixa. Era uma trabalheira esse negócio de viver escondendo o dinheiro para que ele não o dilapidasse todo em bebedeiras e, quem sabe, até mesmo outras mulheres.


Capítulo 4 - A História, segundo Rosa – 1952 - 1983

 

Depois da saída de Cidinha, Rosa deixou-se ficar um pouco no sofá, contemplando o jardim da sede, pela porta de vidro. Lembrou-se da primeira casa da Sociedade, na Alameda Cleveland. Tantas vezes se falara em comprar um imóvel nas reuniões de diretoria, já que aquele ocupavam por empréstimo. Ela freqüentemente estava nas reuniões, era sócia fundadora. Mas, por mais que todos se esforçassem, por mais que se promovessem chás e festas e eventos beneficentes, o dinheiro ia todo nas necessidades do dia a dia, na organização dos cursos de pais e professores, na folha de pagamento, na alimentação das crianças... Hoje também não era diferente. 50 anos depois, ainda lutavam com dificuldades semelhantes.


Rosa se viu transportada no tempo, passou num segundo pelas inúmeras reuniões de diretoria que presenciara e tentou, mentalmente, ordenar os muitos presidentes com os quais convivera. Na década de cinqüenta: Prof. Antonio Carlos Pacheco e Silva,  Dr. Mário Althenfelder da Silva, Dr. Paulo de Camargo. Nos anos sessenta, Sylvio de Campos Mello Filho e foi na sua gestão, lembra-se Rosa, com um sorriso maroto a flutuar-lhe nos lábios, que tentaram despejá-los da casa da Alameda Cleveland. Era uma casa emprestada pelo governo e, sabe Deus porque, alguém resolveu retomá-la. Rosa quase ri à lembrança dos brutamontes da polícia tentando fazer o despejo. Ela se plantara à frente do portão e gritara :


- Aqui só entram sobre o meu cadáver.


E os homens não entraram. Ninguém ousou desafiar a incrível autoridade daquela frágil mulher que gritava, determinada, diante do grande portão de ferro. Também, pudera! Autoridade que vinha da necessidade de 94 alunos que estavam lá dentro e de mais de 2350 casos atendidos pela Sociedade até então. Autoridade dos anjos! – ri-se a velha Rosa, lembrando o fato há tantos anos passado!


Depois, nos anos sessenta, viera aquela belezinha de presidenta, a Dona Cacilda Anhaia Mello. Mas durara pouco seu mandato pois ela tivera que se afastar por problemas de saúde.  E, em 1964 (como se esquecer do ano, aquele fatídico ano em que começara a Ditadura Militar?) tomara posse a esposa do famoso homem de TV, Blota Jr., ela também famosa com seu nome artístico de Sonia Ribeiro, na verdade Neyde Blota Jr.


Rosa lembrava-se com clareza da tranqüilidade da presidente, constatado o déficit da sociedade, pedindo aos diretores um maior empenho no sentido de levantar recursos para o equilíbrio das contas.


Dois anos depois, a Sociedade tinha dinheiro sobrando. Sonia Ribeiro ficou à frente da Pestalozzi até o começo da década de setenta. Foram anos de grande visibilidade para o trabalho da sociedade. Figura pública, de grande sucesso na TV, apresentando shows líderes de audiência na TV Record, Sonia era a simpatia em pessoa. E não havia como resistir aos apelos dela em favor das crianças especiais pelas quais se responsabilizara.

 

Depois vieram Ilde Maksoud e Benedito José Correa. Foi então, em 1971, que a Pestalozzi recebeu um terreno doado pela prefeitura municipal de S.Paulo para a construção de sua sede própria. Lembrando assim, é tudo rápido, reflete Dona Rosa. Mas quando ganhamos o terreno já estávamos perto de completar 20 anos de atividades, 20 anos de luta para manter educadas e alimentadas aquelas crianças difíceis e especiais, muitas das quais seriam renegadas pelas próprias famílias ou mesmo mantidas presas, acorrentadas até, como se animais, como se ainda estivéssemos na Idade Média.


Ah...Sim, ela não se arrependera jamais de ter aceito, há cinquenta anos passados, a incumbência que lhe dera o Dr. José Maria de Freitas. Sentia-se realizada. Ajudara a salvar muitas vidas, a recuperar essas vidas. Havia mesmo hoje em dia um velho funcionário que hoje morava na sede e fazia as vezes de porteiro, jardineiro e caseiro, que chegara lá ainda criança, como aluno. Ali aprendera a ler e a escrever, ali conquistara a dignidade do trabalho e ali estava até hoje, participando daquela obra interminável, que já cobria várias gerações de crianças, a absoluta maioria muito pobre, que não teriam chance alguma no mundo, não fosse a Pestalozzi.


Os pensamentos de Rosa se voltam então para o trabalho de Nazareth Castaldi Sampaio, que substituíra brilhantemente o presidente Benedito Correa, quando esse licenciou-se. Sem o glamour de estrela de Sonia Ribeiro, ela também conseguira manter estáveis as finanças da Sociedade e mantê-la presente e atuante junto à opinião pública e aos órgãos de imprensa da época. Terminou por ser eleita para presidência cargo que ocupou  por alguns bons anos. Conturbados anos 1970! Anos de endurecimento do regime militar, quando todos pisavam em ovos, temerosos de serem confundidos com simpatizantes da esquerda, então na mais negra ilegalidade e vítima da mais dura repressão. Anos do milagre econômico, milagre este que o país pagava até hoje, com juros altíssimos. Uma prosperidade de araque, pensa Rosa. E seus olhos voltam-se para a placa prateada, pendurada na parede da sala dos troféus, onde se lê: aos tantos dias do....

 

Mas foi durante as seguidas gestões de Nazareth, reconhece Rosa em seus pensamentos, que a construção da nova sede caminhou bem. Fora estabelecido um fundo para as obras e quando, em 1981, a presidente passou o cargo para Bárbara de Souza, todos lamentaram a sua saída.


Foi Bárbara, porém, a presidente da primeira assembléia realizada na nova sede, à Av. Morvan Dias de Figueiredo, na verdade plena Marginal do Rio Tietê. Rosa se ri à lembrança da trágica chuva que inundara S.Paulo naquele dia 20 de janeiro de 1983, adiando a primeira assembléia a ser realizada na sede para o dia 31. Ela jamais se esqueceria. Hoje as enchentes de verão já se tornaram uma banalidade, embora ainda permaneçam trágicas para as suas vítimas. Mas há duas décadas atrás ainda eram um acontecimento digno de nota.


E é também a chuva quem tira Rosa de suas lembranças. De repente, começa lá fora uma tempestade e há uma agitação de gente correndo, uis e ais, e vem a servente, com a bandeja na mão:

- Dona Rosa, vai almoçar conosco hoje, não vai?


Rosa levanta-se deixando as lembranças na sala dos troféus e dirige-se para a sala de almoço onde a presidente, Marilene Silva e Silva, a vice, Marilda e a promotora de eventos, Diva, certamente a esperam.


Não é sempre que Rosa está na sede. Hoje ela trabalha na unidade de Osasco e orgulha-se, como sempre, de sua missão. Isso também a faz acionar a máquina do tempo e mergulharia novamente em lembranças se não fosse a hora de acompanhar a oração da presidente, Pastora Marilene, agradecendo a Deus pela refeição de que vão desfrutar.


Capítulo 5 - O almoço de Crista

 

Cristina entrega o carro ao manobrista do restaurante. O estabelecimento está lotado, como sempre. É um dos mais bem freqüentados restaurantes de S.Paulo, acessível à elite que pode pagar por um almoço o mesmo que um operário leva um mês de trabalho para ganhar. Mas ela não se importa, nem mesmo pensa nisso. Quer que o filho desfrute também de tudo o que ela conquistou, que freqüente o mesmo mundo ao qual ela pertence. O maitre a cumprimenta. Conhece D. Cristina há muitos anos, sabe do problema de Rogério e admira a coragem da moça em exibir assim, publicamente, o rapazote deficiente.


O pianista toca Night And Day. É a música predileta de Cristina, pena que o burburinho das conversas quase anule o som do piano.  O bar está lotado, todos esperando a hora de serem chamados para as mesas, na sala ao lado. A recepcionista anuncia um nome e um casal desocupa uma das mesas do bar, onde sentam-se Cristina e Rogério.


- Mãe, vamos embora.


- Por que, meu filho?


- Não gosto de sentar aqui nesse lugar, eu estou com fome e isso aqui está cheio de gente. Quando é assim, sempre demora.


- Você está com pressa de voltar?


- Hoje é dia de fazer pão.


- Você gosta de fazer pão?


Rogério apenas balança a cabeça, numa afirmativa. Cristina pensa que, às vezes, o filho não parece ter problema algum. Imediatamente ele começa a brincar com as batatinhas fritas que estão numa cestinha à sua frente.


- Pare com isso, Rogério. Já lhe disse que não se põe a mão nos alimentos e nem se deve ficar brincando com eles. Você já é um moço, já sabe até ler e escrever, precisa se comportar direito.

Rogério larga as batatas, mas começa a bater impacientemente o pé direito contra o chão.


Nesse instante, o coração de Cristina dispara. Ela vê Thomas, sentado algumas mesas adiante, discutindo animadamente com outros dois homens, todos com jeito de executivos. Como se sentisse a força do olhar dela, ele se volta de repente e seus olhos se encontram.

Ele imediatamente se levanta e caminha até ela. Quando ela apresenta Rogério, o rosto de Thomas se crispa:

- Olá, garotão – diz Thomas.


- Eu não sou garotão, já sou um moço e sei ler e escrever! – responde o menino, mal humorado.


Cristina tenta rir, mas emite apenas um esgar nervoso:


- Rogério, cumprimente direito o Dr. Thomas. Ele é o chefe da mamãe no trabalho.


O menino estende novamente a mão e repete a fórmula aprendida:

- Muito prazer, chefe.


Thomas está visivelmente constrangido. Não é novidade para Cristina que está acostumada a ver o mal estar das pessoas diante da constatação da deficiência mental de seu filho. É pior, pensa ela num átimo, com crianças como Rosana, que são down e têm a diferença estampada no físico. Rogério, quieto, ainda pode passar por comum. Mas alguma coisa nele sempre denuncia sua condição, embora Cristina não saiba precisar exatamente o que seria.


- Bom, foi um prazer vê-la aqui – diz Thomas. Desculpe, mas tenho que voltar aos meus convidados. São  da matriz, você sabe.


Ela bem que ouvira dizer que alguns acionistas holandeses visitariam o laboratório naquela semana e sentiu uma pontada de ciúmes profissionais por não ter sido sequer avisada de que eles já estavam no Brasil e, mais ainda, por Thomas nem ter feito menção de apresentá-la a eles. Não pode evitar o pensamento de que, se estivesse sozinha, teria a chance única de almoçar com Thomas e com os tais acionistas. Afinal, ela também era uma executiva e falava inglês fluentemente. Se estivesse sozinha...Pela primeira vez sentiu – e imediatamente repreendeu-se por sentir – vergonha da presença do filho. E disse, mal humorada:


- Você quer mesmo ir embora?


O garoto nem respondeu, já foi se levantando.

Foram comer no drive-in do McDonald’s.



Capítulo 6 -  A História Segundo Rosa – 1983 - 1992

 

Logo depois do almoço, a chuva se foi, o sol voltou e  Rosa resolve ir dar uma caminhada pelas instalações da sede da sociedade. Tem estado tão ocupada na Pestalozzi de  Osasco que há muito tempo não anda pela da sede. Nem ao menos conhece a casa que se instalou lá no final do terreno. Uma casa de verdade, com todas as dependências de um verdadeiro lar. O objetivo é familiarizar as crianças com os trabalhos domésticos mais simples para que elas tenham também um papel e tarefas rotineiras dentro de seu próprio lar. Saber arrumar as camas, manter em ordem um armário, até mesmo higienizar uma cozinha.


Rosa vai caminhando em direção à casa, mas as lembranças do passado teimam em invadir-lhe a mente. É inevitável a comparação das instalações de hoje com as primeiras instalações daquela sede. Era, é claro, muito menor. Não havia o prédio onde hoje funciona o setor de Informática (os alunos se familiarizam com o computador), o centro médico e odontológico. Algumas oficinas já estavam lá, mas as quadras de esporte não. A sociedade mudara-se para cá em 1983. Em junho desse ano  assumiu a presidência ,Isabel Steiner. Nazareth ficou na diretoria, como tesoureira.Rosa não pode evitar um sorriso ao pensar em Dona Naya, como é carinhosamente chamada por todos a Nazareth que tantos anos dedicou à Pestalozzi e até hoje ainda está na ativa, na Federação das Sociedades.


Rosa lembra-se de que foi  na época da inauguração da nova sede  que a sociedade ganhou um terreno e um chalé, em Atibaia e realizou um concurso muito rentável. As contas se fechavam com superávit e a sociedade crescia a olhos vistos, celebrando convênios com órgãos públicos e atraindo a atenção de autoridades na política. Os anos 70 e 80 tinham sido realmente positivos. A nova sede abrigava um maior número de alunos, as oficinas de trabalho proliferavam, ensinando às crianças uma profissão. E Rosa, como sempre, orgulhava-se de participar de uma instituição tão séria e ativa.


Já não eram alvo, como na época em que a presidência estava com uma estrela da TV, de tantas notas em colunas sociais e tanta paparicação por parte da mídia em geral. Mas o importante era que o trabalho sempre encontrava as condições de prosseguimento, a obra continuava a ser realizada.


Rosa lembrava-se ainda da comoção, em 1985, quando Lysair Guarino, presidente da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi, se tornara Diretora Geral do Centro Nacional de Educação Especial, empossada pelo então Ministro Marco Maciel.  A Pestalozzi crescia, em feitos e em importância não somente em S.Paulo mas também em todo o País.


A caminhada de Rosa é constantemente interrompida por pessoas que querem cumprimentá-la. São técnicos, professores, médicos, voluntários. Sem o trabalho voluntário e profissional, é claro, nada disso seria possível. Passam como relâmpagos pela mente de Rosa milhares de fisionomias com as quais compartilhara esses 50 anos de cotidiano. Milhares de pessoas que, direta ou indiretamente, participaram dessa obra. Nesse instante, avista Márcia, a diretora da escola, cruzando o pátio lá adiante. Ela vai apressada, absorta que certamente estará em seus afazeres.


Márcia chegara à Pestalozzi pouco mais que uma menina e se tornara diretora da escola. Depois passara alguns anos longe da sociedade e agora voltava ao seu posto. “Quem aqui se envolve, jamais se desliga completamente”, pensa a velha senhora. E prossegue seu caminho, pensando se as grandes empresas e as marcas famosas que um dia contribuíram de alguma maneira com a sociedade ainda seriam capazes de fazê-lo. Houve época em que associar seu nome ou sua marca a uma sociedade beneficente como a Pestalozzi conferia uma grande status às empresas. Hoje, pensa Rosa, a demanda por participação nas obras sociais é tão grande, tão urgente, que tudo se dispersou e a pobre da Diva (atual promotora de eventos e levantadora de recursos) luta com muita dificuldade até para conseguir as sobras do hipermercado gigante que se instalou ali ao lado da sede.


Mas, ainda assim, quase por milagre, conseguem pagar a folha de funcionários no fim do mês, conseguem organizar chás e shows, embora muitas vezes tenham que recorrer ao auxílio financeiro da Igreja Universal e acionar suas redes de TV para angariar público. E assim, de luta em luta, dia a dia, vão cumprindo suas obrigações.


As crianças têm aulas, assistência de profissionais de saúde, médicos, dentista especializada, fonoaudióloga... têm café da manhã, almoço e lanche...têm aprendizado profissionalizante e muitas delas saem dali para um emprego, ajudando mesmo as suas famílias, a maioria muito pobre. Os que podem, pagam uma pequena mensalidade. Alguns fazem mesmo importantes donativos. E assim vão vivendo.


Mas as lembranças voltam a invadir a mente de Rosa que, depois de visitar a casinha instalada no final do terreno, resolve sentar-se à varanda da casa, contemplando a horta que, a esta hora do dia, está deserta. Os legumes e hortaliças brilham ao sol. E ela pensa, por analogia, no Centro de Aprendizado Rural de S.Roque, iniciado em 1987, ainda na gestão de Isabel Steiner, que viria, infelizmente a falecer em janeiro de 1988, depois de 22 anos de serviços prestados à Pestalozzi, os quatro últimos na condição de presidente. Na falta dela, assumiu a presidência Oscar Steiner. A Sociedade lutava, então contra o orçamento, sempre deficitário. 


Nenhuma instituição, por mais limpa, séria e transparente que seja, está totalmente livre de sofrer golpes por parte de indivíduos inescrupulosos. Rosa nunca entendeu direito que aconteceu em 1989 com algumas aplicações financeiras da Sociedade junto ao Banco do Estado. O que ela sabia é que o rolo todo acabou prejudicando ainda mais as finanças que não andavam lá muito estáveis. Oscar Steiner foi sucedido, ainda em 1989, por Rainy de Moraes Cury. Rosa lembra-se que Rainy propôs uma reforma administrativa mas ela acabou renunciando ao cargo alegando incompatibilidade entre seu emprego público na Saúde e a presidência de uma sociedade que mantinha convênio com quem a empregava. Oscar, que era vice-presidente, voltou a assumir a presidência. Foi por essa época que firmaram-se convênios com empresas particulares para a gestão das oficinas, principalmente a de vassouras. A idéia era profissionalizar a produção e levantar recursos de parte das vendas dessa produção. Mas as vassouras iam se amontoando, quase nada era vendido.


Os anos 1990 no entanto – reflete Rosa – começaram muito difíceis não apenas para a Pestalozzi, mas para todo o País. Aqui na sociedade as dificuldades se empilhavam. Pensou-se mesmo em fechar a escola, já que os salários dos professores estavam se tornando altos demais para os  recursos disponíveis. Por mais que se fizesse, sempre algum imprevisto vinha gerar mais dificuldades. Funcionários da entidade, pela primeira vez em quatro décadas, iam à Justiça do Trabalho. Os convênios enfrentavam crises. Tudo era difícil. “Em casa que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão”, reflete Rosa. Foi nessa época também que faleceu o marido de Dona Naya, entristecendo a todos os que conviviam com ela e que tinham aprendido a amá-la. Tempos duros.


Os recursos foram minguando e a sociedade foi sentindo fisicamente os efeitos disso. Obras de manutenção necessárias foram prorrogadas. Tudo parecia querer desmoronar. Os olhos de Rosa se enchem de lágrimas ao pensar nessa época. Não fôra culpa de ninguém. Apenas acontecera. A diretoria continuara lutando contra as adversidades, mas nada parecia adiantar. O presidente acabou renunciando, ele também com problemas pessoais e de saúde. Foi no começo de 1992 que um dos diretores da sociedade foi ao programa de TV 25º Hora, na Rede Record de TV. Então tudo começou a mudar.


 Capítulo 7 - O Amor

 

Maria Cristina se acostumara ao ritual cotidiano de Thomas a fazer-lhe a corte. Todos os dias ele entrava na sala dela, para comentar qualquer coisa sobre o trabalho, ou sobre os jornais do dia, ou com qualquer pretexto que fosse. Aquilo passou a fazer parte do seu dia e quando ele não aparecia, o que acontecera muito poucas vezes nos últimos meses, ela tinha a impressão de que o dia não fora completo, que faltava algo ou que se esquecera de cumprir algum item na agenda.


A agenda estava diante dela: quinta feira. Desde que se encontraram por acaso no restaurante, na sexta feira passada, ele não aparecera mais. Nos primeiros dias, Crista achou que era porque ele deveria estar mesmo muitíssimo ocupado ciceroneando os tais acionistas em visita ao Brasil. Mas soubera que os estrangeiros haviam partido para a filial de Buenos Aires na terça. Quarta, esperou por ele com o coração descompassado e os nervos tininindo. Nada. Agora a quinta feira estava terminando e ele também não aparecera. Chamou a secretária:


- Carla, você tem visto o Dr. Thomas?


- Essa semana ele não veio aqui no nosso andar, não. Ah...espere. Na segunda ele passou por aqui, mas você estava em reunião com a agência de publicidade e ele disse para não incomodá-la. Perguntou do seu filho.


- Do meu filho?

- Sim. Ele disse que a encontrara no restaurante com o seu filho, que não sabia que você tinha um filho.


- E o que mais?


- Eu disse a ele que você almoça com seu filho todas as semanas e que ele passa o dia inteiro na escola, enquanto você está no escritório. Depois ele foi embora. Só isso. Você quer que eu o localize?


- Não. Não é necessário.


Crica volta para a sua sala, antes que a secretária possa ver seus olhos se encherem de lágrimas. Embora ela saiba que não deveria sentir nada por um executivo que está acima dela na empresa e, além disso, é casado, está apaixonada por ele. Mais uma paixão que vai pelo ralo! – pensa Crica, decepcionada. Não é a primeira vez que homens interessados nela se afastam quando descobrem que ela tem um filho especial. Mulher com filho já é duro de arrumar companhia. Que dirá com um filho especial!


Mas Cristina estava gostando de receber aquela visita diária de Thomas, com aquele charme, sempre se insinuando para ela, elogiando-lhe o trabalho, a roupa, os cabelos. Foi se deixando envolver e nem sequer pensou em Rogério. Nem sequer pensou em nada. Já bastava ele ser casado e seu superior. Bom. Melhor cortar isso já. Não ia ter futuro mesmo. Ela mesma pega o telefone e liga para a Pestalozzi. Avisa que vai buscar pessoalmente o Rogério hoje, que não o coloquem na perua. Recompõem-se, retoca rapidamente a maquiagem e avisa a secretária que está saindo mais cedo.


No carro, no trânsito lento de todas as tardes, relembra a sua luta com Rogério até, há quatro anos atrás, encontrar a Sociedade Pestalozzi. O menino não parava em nenhuma instituição, ela o colocara até internado num colégio especializado do interior, mas ele não progredia. Fora uma vizinha sua, uma moradora do mesmo prédio, que lhe falara na Pestalozzi. A princípio, ela não tinha levado muito a sério. Afinal, a maioria das crianças que freqüentavam a sociedade eram muito pobres, de classe social diferente e ela não acreditava que a convivência com crianças de outro segmento da sociedade fosse facilitar os problemas de relacionamento que Rogério normalmente tinha mesmo entre crianças semelhantes a ele. Mas a vizinha inisitia. Era uma obreira da Igreja Universal do Reino de Deus e voluntária na Pestalozzi. Disse à Cristina que certamente Rogério se beneficiaria dos métodos de ensino utilizados pela instituição e que a instituição se beneficiaria se Cristina pudesse contribuir com uma mensalidade mesmo inferior àquelas que vinha praticando nas escolas especializadas de cunho particular. Assim, todo mundo ganharia. Explicara ainda a ela que as idéias do educador suíço Pestalozzi eram praticadas na Sociedade que se baseava no pensamento desse genial educador, nascido em 1746, uma época em que pouco se sabia sobre psicologia.  Pestalozzi, explicava a vizinha de Crista, comparava o educador ao jardineiro, que deve zelar pelas condições ideais para o crescimento de suas plantas. O desenvolvimento deve respeitar a Natureza e o método deve segui-la, respeitando o princípio da atividade mais do que a mentalização. Isso tem dado muito certo em todas as Pestalozzi do Brasil, dizia a vizinha. E tanto disse que acabou conseguindo levar Cristina e Rogério para uma visita à sociedade.


Crista jamais se esquecera da impressão que lhe causara essa visita. Fora em 1998 e impressionara à ordeira Cristina a energia boa que emanava de todos ali, professores, funcionários, psicólogos...todos! Crista visitara as salas de aula, as oficinas, tudo parecia absolutamente limpo, eficiente, belo mesmo. As crianças tranqüilas em seus afazeres, todo um clima de gentileza e alegria, muito diferente do ambiente pesado que havia em algumas outras escolas para crianças especiais.


Uma semana depois Rogério, tendo passado por todas as avaliações necessárias, era admitido na sociedade Pestalozzi e Crista passou a contribuir mensalmente, embora soubesse que a maioria absoluta das famílias que lá mantinham seus filhos não podiam contribuir com quantia alguma e bendiziam até a alimentação que lá seus filhos recebiam. Sabia também que, apesar dos convênios oficiais e contribuições eventuais de empresas privadas, apesar do auxílio da Rede Record e da Rede Mulher e da própria Igreja, a Sociedade lutava para angariar donativos e promovia uma série de eventos beneficentes, sempre lutando com as dificuldades financeiras.


Porém, fôra finalmente ali que Rogério conseguira juntar as letras que, mal e mal, aprendera na vida. Lágrimas vem aos olhos de Crista ao lembrar-se do orgulho dele lendo, com alguma dificuldade, a manchete do jornal, certo dia ao chegar em casa. Ele estava orgulhoso e queria surpreender a mãe...


Agora também a surpreende ao entrar no carro e já ir reclamando:

- Pô, mãe! Por que você veio me buscar justo hoje?


- Ué. Pensei que você gostaria de vir comigo, sempre reclama que eu chego tarde do escritório. Achei que poderíamos ir comer alguma coisa. Você preferiria ir na perua?


- Com a minha namorada.


- Namorada? Que novidade é essa?


- É a Izildinha, mãe. Uma menina nova que entrou acho que na semana passada.


- E já é sua namorada?

Ele ri, meio encabulado:

- Mas ela não sabe.


- Como, ela não sabe?


- Mas eu vou falar pra ela. Ia falar hoje, na hora da van.


- Bom, amanhã você fala. Onde quer ir comer? – diz Crista mudando de assunto e pensando que ele também estava apaixonado e isso poderia vir a significar mais problemas. Será que a tal Izildinha gostaria dele?


Crista estava mais ou menos preparada para isso. Já haviam conversado bastante sobre o envolvimento sexual das crianças especiais, nas reuniões de pais da Pestalozzi. Mas nunca pensara que aconteceria tão depressa com Rogério. Afinal, ele só tinha 13 anos. Por analogia, pensa em Thomas, para concluir que o encontro no restaurante, afinal, tinha sido bom para que ela se livrasse de vez daquela paixão que só poderia causar problemas. Melhor assim. Melhor preocupar-se com o namoro de Rogério.


Capítulo 8 - A História Segundo Rosa – 1992

 

Rosa chega em casa cansada. Hoje teve que enfrentar um problema na Pestalozzi onde trabalha, um aluno se descontrolara e agredira os colegas. O garoto estava enfrentando problemas em casa, com o pai, que não o aceitara plenamente. É sempre mais difícil para os homens. Em vão Rosa chamara o pai desse menino para participar dos cursos regulares que a Sociedade ministrava às famílias. A mãe estava sempre lá, mas o pai nunca aparecera. A professora dele conseguira contornar bem a situação e as psicólogas terminaram por acalmá-lo. Mas, refletia Rosa, todo o trabalho que realizam com as crianças jamais surtiria os efeitos desejados caso não houvesse a participação da família.


Esse menino estivera apenas reagindo à rejeição paterna que ele, evidentemente, sentia. Era de entristecer e triste se sentia Rosa, que enfrentara tantas crises, que dedicara sua vida a aquele trabalho e tantas vezes via as crianças darem passos para trás por causa do preconceito, da rejeição social e, pior, da rejeição dentro da própria família.


Prepara-se para dormir, tenta ler um pouco para relaxar, mas a sua mente está de novo passeando pela História desses 50 anos da Pestalozzi. Sabe que o trabalho sempre fôra difícil e que muitas vezes, diante das dificuldades e da demora em conseguir resultados com aquelas crianças especiais, um anjo mau lhe sopra o pensamento de que não vale a pena, de que é inútil, de que se anda dois passos para frente e um passo para trás. Momentos de questionamento e desânimo também fazem parte da luta, reflete ela, ainda tentando se concentrar na leitura. Amanhã será outro dia.


A tristeza que Rosa sente agora a faz lembrar-se de uma outra tristeza. Há dez anos passados, em 1992, a Pestalozzi lutava com uma falta crônica de recursos. A palavra de ordem era cortar. Professores foram demitidos, a escola quase parou. Havia uma briga judicial decorrente de uma desastrosa terceirização das oficinas de vassouras, nada parecia ter solução. Um dos diretores foi a um programa de sucesso na TV Record, tentando dar mais visibilidade ao trabalho da Pestalozzi e, com isso, facilitar a entrada de recursos. Foi então Pastor Marcelo Crivella e sua esposa, na época tesoureira da TV Record,  resolveram fazer uma visita à entidade. Tudo parecia abandonado e precário na sede, naqueles tempos. Impressionados, o pastor e sua esposa propuseram à diretoria da Sociedade uma ajuda econômica substancial para que se pudesse, novamente, levantar a instituição. Mas o estatutos da Igreja Universal do Reino de Deus, que eles representavam, exigia que houvesse a participação de seus membros na presidência e na tesouraria da entidade que fosse ajudada por ela. A diretoria da Pestalozzi abriu mão da ajuda.


Mas, alguns meses depois, após o falecimento do Presidente Oscar Steiner, toda a diretoria da Sociedade renunciou, impossibilitada que se sentia de continuar a administrar sem recursos, com recebimentos atrasados dos convênios oficiais, com as atividades diminuídas drasticamente e com a sede precisando urgentemente de reformas.


Os membros da Igreja, no entanto, haviam se sensibilizado para a causa da Pestalozzi e tornaram-se sócios Benfeitores, doando somas relevantes à Sociedade.


Diante da renúncia coletiva da diretoria, em novembro de 1992, uma nova chapa foi registrada e, assim, assumiu a presidência, no mês seguinte, o Cel. Márcio de Lima Araújo, também pastor da Igreja.


Tudo era tristeza naquela sede, lembra-se bem a Rosa. Os móveis já não brilhavam, os pisos estavam encardidos,  havia limo nas paredes. A escola parcialmente fechada, funcionários em número insuficiente, jardins abandonados. Se perguntada, Rosa não saberia dizer como tinham chegado até aquela desolação. Não fôra culpa de ninguém, repete ela para si mesma, apenas acontecera. Os recursos foram se tornando escassos, as iniciativas para angariá-los já não surtiam os efeitos de antes e tudo fôra progressivamente entrando em colapso. A oficina de vassouras estava lacrada, por causa da pendência judicial e o lixo e os ratos se acumulavam lá dentro, aumentando a impressão de abandono do local.


Rosa lembra-se, ainda, com extrema clareza, de que a diretoria demissionária de então recomendara às futuras diretorias que não deixassem de prestar homenagens aos que haviam, ao longo dos anos, feito brilhar o trabalho da Sociedade em S.Paulo. Rosa lembra-se de todos os nomes citados então, lembra-se de seus rostos, lembra-se das muitas horas de trabalho e dedicação dessas pessoas que haviam feito da Pestalozzi uma instituição reconhecida por seus excelentes serviços, mesmo que, naquele fatídico ano de 1992, houvesse aquele crônica dificuldade, aquela visível decadência. Um a um, em suas lembranças, Rosa os enumera: Oscar Steiner, Carlos Palhares F. Sampaio, Sonia Ribeiro, Iraci Caloi, Evelina Penteado Siciliano, Maria Grazia Percussi, Marli Prado Vacari, Marcolino Vacari, Sonia Blota Belotti, José Blota Jr., Paulo Afonso Aranha, Nazareth Castaldi Sampaio (a sua querida Dona Naya), Lair Antonio de Souza, Agatha Maria D’Angelo, Ignez Joana Paterno, Cláudio Pieroni e Odila Toledo Lara.  Rosa lembra-se de todos e de muitos outros, diretores, sócios beneméritos, inúmeros voluntários, sem os quais nada teria sido possível.


Os tempos negros se foram e com eles se foi a tristeza de Rosa que viu, nos anos seguinte, passo a passo, a Sociedade recuperar-se e voltar a crescer. A vida é assim mesmo, pensa ela, há tempo para tudo. Tempo para plantar, tempo para colher. E, como por milagre, a tristeza pelo episódio de hoje a abandona. Pensa novamente nos passos para frente que, dia a dia, aquelas crianças especiais vão dando, em direção a um futuro melhor. Pensa na alegria delas, trabalhando nas oficinas, escrevendo as primeiras letras em seus cadernos. E, pensando nisso, finalmente adormece. Amanhã terá mais um dia cheio.


Capítulo 9 - Izildinha

 

Jovelina está animada e feliz. Agora já pode ganhar algum dinheiro e, nestas últimas duas semanas, conseguiu recuperar algumas antigas clientes e está já com faxina marcada em duas casas por semana. Benvindo dinheiro! Bendita Sociedade Pestalozzi! Agora que conseguiu uma vaga para a neta na Sociedade, Jovelina pode voltar a trabalhar. Antes, com a menina em casa e a mãe dela na prisão, nem pensar.


A filha de Jovelina, mãe de Izildinha, estava novamente presa. Ela passara anos foragida, mas a polícia demorara bastante para reconduzi-la à cadeia. O mundo dá muitas voltas, pensa Jovelina. Foi logo depois que a Izildinha nasceu que Marta fora presa. Marta era uma policial militar, estava mesmo se saindo muito bem na corporação. Mas envolveu-se com um traficante, ficou grávida da Izildinha e, quando o pai desta  a deixou para ir viver com outra mulher, ela não pôde suportar. Matou o homem com três tiros no peito. Pronto. Encrenca pro resto da vida. Respondera processo por envolvimento com o tráfico e por assassinato. Pegara 20 anos.


Naquele tempo, Jovelina e sua outra filha, Maria, viviam do salário de Marta e de eventuais faxinas que ambas faziam na casa dos ricos. Sem o salário de Marta e tendo que gastar ainda mais com todo o processo, Maria e Jovelina se viram com um bebê para cuidar e com todas atribulações do enfrentamento do processo de Marta. Mal podiam trabalhar, começaram a faltar às faxinas e foram perdendo os seus empregos. Foram tempos muito difíceis, comiam quando os vizinhos ajudavam, passaram fome mesmo e só quando Maria conheceu André e casou-se com ele, Jovelina pôde voltar a trabalhar regularmente. Isso fôra há uns 10 anos.


Hoje Jovelina ainda morava na casa de Maria e André, mas Maria tivera também filhos e, cada vez menos, se dispunha a cuidar de Izildinha. A menina dava muito trabalho. Não conseguia ficar em nenhuma escola, jamais aprendera a ler e escrever, perturbava as coleguinhas e o ambiente, um horror. Por isso Jovelina é quem tinha que ficar em casa cuidando da neta.  Quando a menina tinha uns 5 anos de idade, veio o diagnóstico, de um médico simpático do Instituto da Crianças, no HC, onde Jovelina tinha, a duras penas, conseguido um atendimento para a garota. Déficit mental por subnutrição. Esse era problema de Izildinha. Agora, que a neta já com 11 anos, finalmente Jovelina encontrara a Sociedade Pestalozzi. Ficara na fila, esperara quase um ano, mas conseguira uma vaga. A van da sociedade ia buscar e levar Izildinha, todos os dias e o pessoal de lá garantia que ela aprenderia, sim, a ler e a escrever. Além disso, as refeições da menina estavam garantidas e Jovelina finalmente podia trabalhar todos os dias e ganhar um bom dinheiro com as suas faxinas. Ela era muito competente no trabalho e suas antigas patroas ficaram felizes em tê-la de volta.


Por isso Jovelina agradecia a Deus. Por existir gente capaz de doar seu tempo, seu dinheiro, seu trabalho, apenas para cuidar de crianças como a Izildinha. Jovelina sabia bem o que era conforto e riqueza. Trabalhara anos na casa de uma importante família da Avenida Paulista. Arrependia-se, inclusive, de nunca ter dado ouvidos aqueles seus primeiros patrões que diziam que ela, mesmo já sendo adulta, deveria procurar aprender a ler e escrever. Mas ela pensava então: pra que? Era jovem, bonita. Logo se casou. O marido bebia e batia nela. Mesmo assim, tiveram as duas filhas, Marta e Maria. Separou-se do marido, começou a fazer faxinas e assim foi ficando conhecida  num círculo de famílias respeitáveis e tinha muitas relações com gente rica, gente que a ajudara, inclusive nos tempos mais difíceis.


Agora, aos 65 anos, arrependia-se de não ter aprendido a ler. Porque encontrara, logo depois do nascimento de Izildinha, a Igreja. E não podia ler, como os outros, a Palavra. Mas mesmo assim podia escutá-la e freqüentava regularmente os cultos, tornara-se mesmo uma evangelizadora. Se soubesse ler, pensava ela, poderia ser obreira e fazer ainda mais. Fôra também na Igreja que ouvira falar na Sociedade Pestalozzi. E, embora acostumada a ver o conforto, ficara impressionada com as instalações da Sociedade quando lá estiver pela primeira vez. Logo percebeu que Izildinha poderia ser feliz ali e a neta realmente parecia mais feliz agora.


Por isso, apesar da tristeza de ver Marta atrás das grades, Jovelina estava feliz. Deus atendera suas preces. Os outros netos, filhos de Maria, eram saudáveis. André, seu genro, era bom para a família e, mesmo sendo muito pobres, viviam com dignidade, moravam num pequeno apartamento da Cidade Tiradentes onde tinham até telefone! E, na sua idade, ainda tinha disposição e forças para enfrentar as faxinas pesadas.


Tudo estava bem, afinal. Jovelina faz uma prece por todas as pessoas que colaboram e colaboraram um dia para que existisse um lugar tão bom como aquele, a Sociedade Pestalozzi. Haviam explicado a ela que o nome da Sociedade se devia a um antigo professor estrangeiro que criara novos métodos para a educação, há muitos e muitos anos atrás. E Jovelina rezava também pela alma dele.


Capítulo 10 - A História Segundo Rosa – 1994 - 1997

 

É engraçado, pensa Rosa, que agora que faltam apenas uns poucos dias para os 50 anos de fundação da Sociedade Pestalozzi de S.Paulo, exatamente agora, as lembranças venham tomando conta de sua mente. Há semanas que ela se flagra, cada vez mais freqüentemente, mergulhada no passado. Talvez seja a velhice, pensa brincalhona.


Rosa está com quase 80 anos de idade, a morte pode surpreendê-la, sem aviso prévio, a qualquer momento, e dizem que, perto da morte, afloram à mente as lembranças da vida. Rosa porém não se julga candidata a deixar essa vida tão cedo. Ainda é forte, tem saúde e sente-se perfeitamente disposta para o trabalho. Todos os dias vai à Pestalozzi de Osasco, onde coordena todas as atividades.


Hoje porém dirigi-se à sede paulistana, pois tem uma reunião importante com os novos assessores de imprensa que, por coincidência, querem ouvir dela um pouca da história da qual ela é testemunha viva. Dona Naya também estará lá. Rosa sente-se feliz em rever a amiga, com a qual trabalhara cotidianamente por tantos anos. Dona Naya sempre estivera presente na Sociedade, como presidente, diretora e coordenadora da Seção das Voluntárias. Hoje dedica-se à Federação das Sociedades Pestalozzi no Brasil. A van da sociedade, depois de buscar as crianças, agora conduz Rosa até a sede e ela, observando o louco movimento das avenidas marginais, se perde novamente no mar das recordações.


No começo da nova diretoria, representando a Igreja Universal do Reino de Deus, assumira a presidência o Cel.Márcio de Lima Araújo. Tudo estava em franca decadência e o coronel preocupava-se em botar a casa em ordem, pouco ligando para o esforço das voluntárias, preocupadas com suas iniciativas de cunho social. Nessa época, durante os anos de 93 e 94, Rosa sentia mesmo um certo mal estar, como se o pessoal novo não quisesse saber do passado ou das pessoas que lá estavam e representavam esse passado. Foi então que transferiu-se para Osasco, mas continuou a acompanhar de perto o trabalho que estava sendo realizado na sede.


Aos poucos o prédio foi adquirindo novamente uma aparência respeitável. Tudo foi limpo e pintado, começaram os melhoramentos. A escola retomou suas plenas atividades, assim como as oficinas, menos a das vassouras, que continuava lacrada por causa da pendência judicial. O coronel afastou-se da presidência no final de 94, passando o cargo a Damaris Lago que ficou pouco tempo à frente da entidade. Em março de 1995 a presidência foi assumida por Marilene  da Silva e Silva que já completara, portanto, nesse ano de 2002, sete anos de feliz administração.


Marilene é uma pessoa que passa muita tranqüilidade, pensa Rosa, mas sabe ser enérgica quando a situação assim o exige. Com ela, a Pestalozzi realmente revivera.  Rosa quase gargalha ao lembrar-se do episódio da Oficina das Vassouras. Cansada de lutar contra os entraves burocráticos para conseguir abrir o galpão da oficina, interditado judicialmente, numa bela manhã, Marilene mandara chamar um funcionário e simplesmente ordenara a ele que abrisse a oficina e mandasse limpá-la e arejá-la e jogasse fora todo o lixo remanescente da antiga produção terceirizada. O homem ficara olhando para ela com cara de bobo.


- Vamos, homem! Faça o que estou mandando...


- Mas...Mas...Dona Marilene, o oficial disse que só poderíamos abrir com ordem da Justiça.


- E quem é que manda aqui? O oficial ou a presidente?


O homem baixou os olhos:

- Sim senhora.


E foi cumprir a ordem. Caso não o houvesse feito, estariam até hoje com aquele monte de lixo, juntando ratos e baratas, amontoado no meio do pátio. Hoje a velha oficina de vassouras se transformou num espaço produtivo onde os alunos aprendem uma atividade que, mais tarde, poderá garantir-lhes o sustento. E quando foi questionada sobre as conseqüências de desobedecer à ordem judicial, Marilene foi taxativa:


- Responderemos por nossos atos. O que não podia continuar era um espaço perdido aqui dentro e, pior, amontoando lixo, virando fonte de contaminação. Abrimos, sim, pelo bem das crianças e é só o bem das crianças que nos interessa aqui.


Sim. O bem das crianças, sem dúvida, era o que norteava o trabalho daquela mulher. Assim como era também o que dava forças ao corpo de Rosa para continuar saudável na luta cotidiana. Rosa recorda-se agora da luz de gratidão que já vira em tantos olhos, por causa da obra da Pestalozzi. Famílias agradecidas. Jovens que saíram de lá direto para um emprego. Era só isso que justificava a dedicação, as crises de desânimo, os conflitos, a dificuldade de se estar lidando com crianças especiais.


Nos dois primeiros anos da administração da Marilene, foi criado o Centro de Diagnóstico e Tratamento com 20 salas para as diversas terapias, sala de Fisioterapia com piscina térmica para hidromassagem, sala para Estimulação Precoce, dois gabinetes dentários, um exclusivo para bebês; todos os prédios passaram por reformas e melhorias e a escola só fêz crescer. Havia dinheiro. É claro que todo um corpo de voluntários continuava se esforçando para angariar fundos, donativos e que as promoções de eventos beneficentes funcionavam a todo vapor. Mas, no balanço final de cada mês, sempre que preciso, lá estavam a Igreja Universal do Reino de Deus e empresas ligadas à ela, como a Rádio Record SA, contribuindo sem discutir.


Um dia, Marilene entrou na sala de almoço exibindo no rosto a palidez de um susto. Rosa estava lá e testemunhou o fato:

- O Bispo me disse que, de agora em diante, vamos ter que nos virar sozinhas.


O que, traduzido em miúdos, significava que a Igreja continuaria a contribuir com a Sociedade, assim como faziam os convênios oficias e outras entidades associadas, mas que, dali para a frente, a Igreja não mais cobriria os eventuais deficits orçamentários.


A van estaciona em frente à Sociedade e Rosa deixa as lembranças para entrar de novo no presente.


Capítulo 11 - O Destino de Cidinha

 

Naquela noite Pedro chamou Cidinha para uma conversa. Ela esperava que, depois da explosão da manhã, ele estivesse de novo meio bêbado, mas encontrou-o estranhamente calmo e sóbrio, sentado na cama de casal:


- Aparecida – começou ele, muito formal e sem usar o apelido dela – tomei uma decisão.


Cidinha sentou-se cautelosamente na ponta da cama.

- Que decisão, Pedro?


- Olhe, eu estou desempregado há muito tempo, você tem o salão de beleza que, mal ou bem, paga as contas da casa, as necessidades das crianças. Só tenho 42 anos e sou ainda um homem forte. Mas toda essa situação, sem trabalho, sem ter o que fazer, sem dinheiro...


- Mas eu sempre lhe dou dinheiro do salão!


- Sei, mas é o seu dinheiro. Não o meu. Eu ando nervoso, tenho sido um mau marido, um mau pai. Assim, resolvi ir embora.


- Embora pra onde, meu Deus?


- Num navio. Tenho um amigo que trabalha numa companhia de navegação lá em Santos. Ele esteve em S.Paulo nos últimos dias e nos encontramos no bar. Estão recrutando gente pra trabalhar num cargueiro.


- Mas você não entende nada de barco, nem nunca foi marinheiro.


- É na administração. Vou trabalhar na administração, como contador auxiliar, como eu fazia no escritório. Se eu puder, dos portos onde parar, ainda te mando um dinheirinho pra ajudar nas despesas.


Cidinha olhou para o seu homem com os olhos cheios de lágrimas. Ela o amava, ainda, apesar de nos últimos meses ele viver a agredi-la, pois andava bebendo muito, desiludido da vida e sem  nunca ter aceitado aquela filha diferente. Ela o amava, compreendia e perdoava mas, não podia negar, sentiria um certo alívio com a partida dele. Seria bom principalmente para Rosana, que, ela percebia, sofria muito com a rejeição do pai. Cidinha até andara conversando sobre isso com a psicóloga lá da Pestalozzi.


- E quando você vai ? – fôra a única coisa que conseguira perguntar.


- Amanhã mesmo desço pra Santos pra tratar da papelada e vou ficar hospedado na casa desse amigo até o navio partir.


- Mas você vai voltar, não vai?


- Quando for possível. Mas eu não quero que você se prenda. Se aparecer outro homem na sua vida...


- Você ainda é o homem da minha vida.


- Mas não somos mais felizes. A culpa deve ser minha. Você nem me quer mais como homem, eu sei. Eu percebo.


Cidinha não conseguia encontrar palavras. Porque, no fundo do seu ser, sentia um grande alívio. Ia ser muito bom para Rosana essa ausência do pai. E o resto, fosse o que Deus quisesse. Sobreviver, ela sobreviveria. O salão não dava muito lucro, mas provinha o suficiente para as necessidades do dia a dia, aluguel, contas, comida e roupa para as crianças. E ela já estava mesmo, há muito tempo, assumindo sozinha todas as responsabilidades. Pedro só sabia beber e ter crises de nervos e nada a ajudava em casa ou com as crianças.


Cidinha pensou então que esse era de fato o destino da maioria das mulheres. Um dia os seus homens as abandonavam com a própria prole. Homens não se ligam em filhos. Não foram eles que os gestaram, concluiu ela. Ainda mais no seu caso, com aquela filha especial. Pensou nas muitas mulheres que conhecia e que tinham tido destino semelhante ao dela. Quantas e quantas mães trabalhando fora e dentro de casa, abandonadas pelos companheiros, para prover as necessidades dos filhos.


Deu um leve sorriso, com uma ponta de ironia e disse apenas:

- Desejo-lhe sorte. Agora vamos comer, que o jantar está na mesa.


Capítulo 12 - Cristina e Thomas

 

Cristina entra no escritório cantalorando. Carla, a secretária, olha para ela e não consegue se conter ante à visão dos olhos de sua chefe, que brilham mais do que de costume, o rosto corado, o corpo vibrante:

- O que houve? Viu o passarinho verde? – pergunta Carla bem humorada.


- Azul. Vi o passarinho azul – ri Crista.


Uma montanha de trabalho a espera e ela teme não ter hoje a concentração suficiente para resolver todas as pendências. Felicidade demais também atrapalha, pensa.


Como entender aquela maravilha que o destino reservara a ela? Está feliz, mas teme que tudo seja mais uma ilusão.


No dia anterior, depois de vários dias de ausência, Thomas telefonara a ela no final do expediente:

- Cristina, se importaria de me acompanhar num drink após o trabalho?


Nossa! Por essa ela não esperava.


- Não, claro que não. Gostaria muito.


- Você já está saindo?


- Em cinco minutos.


- Então nos encontraremos na garagem em cinco minutos.


Foram a um pub discreto, ideal para namorados. Na mesa, ela reparou que ele não estava usando aliança. Ele percebeu a direção do olhar dela e disse:

- Cristina, acabo de me divorciar.


- Lamento.


- Não. Não lamente. Foi um processo sofrido, mas foi bom para mim e para ela. Eu sei que nós dois mal nos conhecemos, apenas trabalhamos juntos, mas você deve ter notado o meu interesse. Não sou homem de viver sozinho. Penso que, se você também tiver interesse, podemos tentar um relacionamento, nós dois.


Cristina estava atônita.

- Mas...


- Você não quer tentar?

- Sim, eu quero, mas...


- Eu sabia que você era solteira e que tinha tido um filho. Confesso que me assustei quando o conheci e vi que ele era um jovem com problemas. Deve ser duro para você, sozinha, cria-lo. Eu tenho três filhos, que ficaram com a mãe. Gostaria de tentar criar um laço mais forte entre nós dois.


O resto da noite fôra como um sonho bom. Conversaram animadamente, descobriram que tinham gostos em comum e profundas discordâncias políticas. Terminaram a noite no motel e Cristina foi feliz.


De manhã, foram tomar café numa padaria e quase se atrasaram para o trabalho.

 

Capítulo 13 -  A História Segundo Rosa  1998-2002

 

Faz mais de meia hora que Rosa está sentada no sofá da sala dos troféus. Há uma movimentação anormal das serventes que passam para lá e para cá, agitadas. Estranho, pensa a velha senhora. Já deveriam ter me chamado para o almoço, alguém já deveria ter passado por aqui, me cumprimentado. Mas nada. Apenas as serventes e tudo está estranhamente quieto. Nem a Dona Naya ainda apareceu. Nem sinal da presidente ou das pessoas que viriam para almoçar com ela.


Rosa pensa em ir dar uma volta, mas está chovendo e ela, para falar a verdade, está estranhamente cansada e as lembranças lhe vêm novamente com a força de um sonho. Parece que ela está vendo o passado. Mas, desta vez, o passado recente.


E o que ela vê é a alegria dos diretores no dia da inauguração das novas salas de aula, 6 salas. No mesmo dia foram inaugurados o salão de eventos,4 novos banheiros com 3 chuveiros cada, um depósito e o bebedouro, além do play ground e duas novas oficinas: a Ocupacional de Convivência, que visa o preparo pré profissionalizante e a de Informática, com equipamentos doados pelo PROINESP, órgão ligado ao MEC.


Já foi há dois anos, pensa Rosa, mas parece que foi ontem. E ela que um dia chegou a pensar que a Sociedade estava mesmo fadada a desaparecer, de tão triste que andava. Mas um trabalho importante desses não pode simplesmente desaparecer, conclui ela. Vai durar para sempre. Sempre aparecerá quem queria dar seu tempo, seu trabalho, seu dinheiro, para uma causa como essa.  


Mais tarde, em 2001, lembra-se Rosa, veio a Oficina de Costura e a Cozinha Experimental, criadas em pareceria com o Senai. E veio também aquela linda casinha, lá do fundo, que ela visitara um dia destes. Rosa sorri ao pensar na brinquedoteca. O que será que virá agora? Em breve estarão comemorando os 50 anos de fundação. A presidente promete uma festa maravilhosa.


Mas nem precisava, pensa Rosa, pois todos os dias há uma festa aqui, a festa dos olhos das crianças, que brilham, a festa da alegria dos pais e familiares ao constatarem o progresso dos alunos, a festa da certeza do dever cumprido que atinge indiscriminadamente a todos, funcionários e voluntários. A cada coisa que se consegue, a cada doação, a cada conquista para um evento promocional, o salão, o desfile, o buffet, os convites...cada passo é uma festa. Valeu a pena, pensa Rosa. Valeu a pena cada aborrecimento, cada momento de desânimo, cada obstáculo.


Nesse instante, Marilza, a vice presidente aparece na sala.

- Vamos, Dona Rosa?


Finalmente, pensa Rosa, se lembraram de mim e vai se dirigindo para a sala de almoço.

- Não. Não é aí, Dona Rosa – diz Marilza – É lá no refeitório das crianças.


Rosa estranha mas segue a vice presidente. Tudo está estranhamente quieto no pátio, percebe. Quando a porta se abre, uma explosão de aplausos e vivas a espera. Rosa caminha surpresa por entre a multidão de pessoas que grita seu nome: Ro-sa! Ro-sa! Ro-sa!


A presidente pede silêncio e anuncia:

- Nos reunimos aqui hoje para a primeira homenagem que fazem parte das comemorações dos cinquenta anos de nossa entidade. E essa primeira homenagem não poderia ser para outra pessoa que não a nossa mais antiga colaboradora, a n.1 da Pestalozzi, querida e amiga de todos vocês: Dona Rosa.


Voltam os gritos e os aplausos: Ro-sa! Ro-sa! Rosaaa!


E a velha senhora vê, um a um, todos os rostos e todos os olhos. Lá estão as professoras, lá está a Márcia, diretora da escola. As doutoras. A dentista. Lá está Crista, abraçada a Rogério, feliz e ansiosa, cheia de perguntas sobre o futuro de seu novo amor. Lá está a menina Rosana, ao lado da mãe que – Rosa repara – tem nos olhos um estranho ar de alívio. Rosa distingue ainda, no fundo da sala, a nova aluna, Izildinha que olha insistentemente para Rogério. Um a um, todos os rostos de todos os alunos. Agora todos cantam, em homenagem a ela, liderados pelos alunos-cantores que ontem se apresentaram num programa de TV. O coração de Rosa parece querer saltar o peito e seus olhos cansados se enchem de lágrimas. Vendo as carinhas queridas dos seus meninos ela agora tem absoluta certeza de que são todos, todos, uns anjos.

 

 

São Paulo, 1 de junho de 2002.



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